O menino adentra a densa massa corpórea da multidão numa manhã cinzenta. Todos absortos em suas conjecturas, nem mesmo percebem quando os pequenos olhinhos vivos recaem sobre as peças de roupa cuidadosamente arrumadas sobre o escuro quadriculado do chão. Dentre os itens da intrigante indumentáriazinha, que mais se assemelham a peças de um quebra cabeças macabro, um em especial chama a atenção de Albert, um lenço branco. Nele bordado o nome Lorraine.
Albert não sabe ao certo quanto tempo esteve a contemplá-la antes que um vento vindo de súbito erguesse a delicada peça conduzindo-a até onde apenas a imaginação de um homem é capaz de chegar. Ele então se levanta num salto, seu instinto investigativo se aguça, e sentindo-se ainda achegado de gente, encaixa os dedos de uma mão entre os da outra esticando os braços pra frente, franze a testa, ajeita seus óculos e diz para seus Watsons, com impar:
- Sigamos a pista!
E sai o menino seguindo o lenço, o qual é levado pelo vento até a entrada, pela superfície, de uma das galerias da rede pluvial. Albert vai a passos lentos para que o acompanhem, já os imaginava boquiabertos, abismados com sua astúcia e destreza. Esperava que a menina estivesse bem e já pensava até nas palavras que usaria para consolá-la e a abraçaria se estivesse frio - e com certeza lá estaria frio.
Ao chegar em frente à velha galeria um tremor esmorece-lhe as pernas, ele vira a cabeça para trás lentamente, mas as sombras de seus expectadores o instigam. A galeria ficava nos fundos do parque Heinstein, as amoreiras carregadas deixavam cair seus frutos por sobre os brancos bancos, tingindo de vermelho a inocência de sua cor. O menino respira fundo e entra. O lugar decrépito tem um cheiro forte, acre, mefítico de matéria orgânica decomposta, provavelmente devido a grande quantidade de roedores pestilentos ali presentes, as paredes eram cinzentas e úmidas, uma escada de poucos degraus imergia nas sombras de um subterrâneo umbroso, silencioso e frio. O menino segue firme, os heróis não temem, não vacilam, não... Um som rasgante rompe o silêncio, como que em agouro, Albert só pensava no medo que os outros estariam sentido agora, mas que nada! Confiavam nele e em seus instintos, era muita responsabilidade, mas daria conta. Ao chegar lá embaixo um estreito corredor se estendia a sua frente e uma água des-inodora, des-insipida e des-incolor lhe batia nos joelhos. Adentrou. Os enormes ratos cinzentos subiam e desciam pelos lados, na encosta das paredes úmidas. O silêncio é rompido pela segunda vez, agora por um inesperado espirro. Droga! Era a alergia, mas nem isso atrapalharia sua missão, se nem seus pais, sempre tão cuidadosos, disseram nada... O menino continua seguindo pelo corredor quando finalmente encontra o lenço de Lorraine boiando na superfície do líquido escuro, à direita em uma bifurcação, e nele, notara bem, havia manchas que não conseguira distinguir, mas não se lembrava de tê-las visto quando o pegou pela primeira vez, as coisas se tornavam cada vez mais estranhas... Talvez aquilo também fosse um sinal, o menino então entra pelo corredor da direita e dezenas de ratos enormes pulam na água fazendo um barulho semelhante a passos. O menino ouve, depois de algum tempo, algo estranho no silêncio e olha para trás instintivamente, é então que ele percebe que agora está... Sozinho?! Oh, não! Eles foram pelo outro lado - ele pensa, e sem vacilar volta pelo corredor escuro. Albert pára, por alguns instantes, novamente em frente à bifurcação, é quando escuta um som mais ao longe, trazido pelo eco, e grita que estão indo pelo caminho errado, mas não obtém resposta.
Albert, então, entra no corredor da esquerda, precisa alcançá-los antes que se percam. O menino anda e anda e a angústia começa a rondá-lo, e se não os encontrasse? E se algo de ruim os acontecesse? Seria por sua culpa. Que grande detetive! Em vez de encontrar pessoas, as perdia, em vez de resolver o mistério, o tornara ainda mais... Seu celular toca, no visor pisca o nome de seu pai, Albert treme e não entende a sensação de insegurança que o toma de repente como se algo nele despertasse, algo como um instinto antigo, um desejo de sobrevivência... Ele leva o aparelho a seu ouvido lentamente, e uma palavra sai confusamente dorida de sua garganta, como se ela também deixasse sua alma.
- Papa!
- Albert! Mon petit, onde estás?
O menino empalidece, teriam seus sentidos o traído? Estaria ele naquele lugar horrível... sozinho... desde o início? Logo imagens como lembranças ficam certas em sua mente - as pessoas se afastando, seus pais próximos ao canteiro, o umbro das árvores, os ratos - tudo fizera o terrível sentido do engano. Então o medo o arrebata, sua voz fraqueja e o frio o toma, ele agora reponde com desespero.
- Papa, estou na galeria do parque Heinst...
A bateria acaba, o menino olha para o aparelho inútil em suas mãos, rezando para conseguir encontrar o caminho de volta. O pavor agora se instalara em seu coração – lancinante - e o menino começa uma busca angustiante pela saída. Ele volta pelo corredor, pára mais uma vez diante da bifurcação, mas centenas de ratos parecem estar vindo da direção de onde ele veio e da que a perpassa, eles agora parecem pequenos demônios com olhos vermelhos e furiosos. Não há saída. Eles o encurralam e o forçam a seguir novamente pelo corredor da direita. O menino chora e seu pranto ecoa despertando algo mal, sua pele já começa a enrugar e ele sente sua cabeça doer, é então que encontra, finalmente, um lugar seco. E sobe a rampa de cimento com dificuldade, as roupas encharcadas lhe pesam, não é mais tão divertido.
Ao longe, próximo a uma outra bifurcação mais adiante, Albert tem a impressão de ver o corpo de uma menina, imóvel, encolhida no chão frio, mas seus óculos estão embaçados, e quando ele vai tentar limpá-los com sua blusa úmida as lentes escorregam do tecido e vão parar no chão. Albert ainda tenta reavê-los, mas estão inúteis, quebrados. Quando o menino levanta as vistas, lá está ela, encolhida, a sua frente, usa apenas uma peça intima com delicados babados cor-de-rosa, ela treme. Ele a olha, a princípio com temor, em seguida, penalizado pelo sofrimento de uma criaturinha tão frágil, se manifestam agora seus instintos fraternais. Lorraine contava quatro primaveras com esta, era-lhe apenas dois anos mais nova.
Albert se aproxima, faz um sinal com as mãos para que ela não tenha medo, que nada mais de ruim a acontecerá, ela responde apenas com uma frase que o deixa ainda mais comovido.
- Tenho... friiiiiiiio.
O menino então, sem pensar, a abraça aconchegando o corpinho da pequena no seu, e diz coisas que a acalentem, como que eles vão ser encontrados logo, que nada de mal vai acontecer, coisas assim. Ele também sente muito frio, e ainda mais agora que compartilha seu calor com Lorraine, por um momento chega a pensar que nenhum dos dois escapará a aquela situação com vida, é então que ele se lembra do lenço, o qual colocara em seu bolso, ele o pega e o entrega a menina, mas agora as manchas parecem mais evidentes, mais vivas, mais escarlates... O súbito sentimento de carinho e compaixão que o amortecera a pouco já se transforma em um terror mórbido, Albert reúne todas as suas forças para encarar novamente a menina, é horrível... A pele dela é fenecidamente branca e seus dedos e lábios estão levemente arroxeados. E há um outro detalhe, um de natureza ainda mais extraordinária - para não dizer aterradora -, a delicada peça de renda, a única que cobre seu rechonchudo corpinho, a qual mostrou-se aleivosamente rosa, é, na verdade, branca, mas de uma alvura maculada pela perversidade e sordidez de um monstro. Ao ver o lenço a menina dá um grito inumano, Albert se assusta e a afasta, mas a menina o encara furiosa e avança sobre ele pondo-lhe as gélidas mãos sobre o pescoço, roubando-lhe as últimas reservas de energia térmica, vital. Albert fica completamente paralisado, entorpecido, inerme. Seus olhos captam borrões do que seriam morcegos agitando-se no alto, essas imagens se confundem com as de dor e desespero que a menina lhe passa, o monstro que a havia arrebatado e lhe roubado a inocência e a vida, machucando-a e depois a abandonando para que morresse ali - o lenço era só uma lembrança, era assim que ele fazia. Albert pensa em seus pais, não quer mais ser detetive, e talvez nem possa ser mais coisa alguma, o mundo é um lugar tão feio, ele então fecha seus olhos encolhendo-se imitando Lorraine, mortificado por seus gritos... suas súplicas... seu medo... sua dor... sua solidão... seu frio... O silêncio.
Texto de k.t.
Albert não sabe ao certo quanto tempo esteve a contemplá-la antes que um vento vindo de súbito erguesse a delicada peça conduzindo-a até onde apenas a imaginação de um homem é capaz de chegar. Ele então se levanta num salto, seu instinto investigativo se aguça, e sentindo-se ainda achegado de gente, encaixa os dedos de uma mão entre os da outra esticando os braços pra frente, franze a testa, ajeita seus óculos e diz para seus Watsons, com impar:
- Sigamos a pista!
E sai o menino seguindo o lenço, o qual é levado pelo vento até a entrada, pela superfície, de uma das galerias da rede pluvial. Albert vai a passos lentos para que o acompanhem, já os imaginava boquiabertos, abismados com sua astúcia e destreza. Esperava que a menina estivesse bem e já pensava até nas palavras que usaria para consolá-la e a abraçaria se estivesse frio - e com certeza lá estaria frio.
Ao chegar em frente à velha galeria um tremor esmorece-lhe as pernas, ele vira a cabeça para trás lentamente, mas as sombras de seus expectadores o instigam. A galeria ficava nos fundos do parque Heinstein, as amoreiras carregadas deixavam cair seus frutos por sobre os brancos bancos, tingindo de vermelho a inocência de sua cor. O menino respira fundo e entra. O lugar decrépito tem um cheiro forte, acre, mefítico de matéria orgânica decomposta, provavelmente devido a grande quantidade de roedores pestilentos ali presentes, as paredes eram cinzentas e úmidas, uma escada de poucos degraus imergia nas sombras de um subterrâneo umbroso, silencioso e frio. O menino segue firme, os heróis não temem, não vacilam, não... Um som rasgante rompe o silêncio, como que em agouro, Albert só pensava no medo que os outros estariam sentido agora, mas que nada! Confiavam nele e em seus instintos, era muita responsabilidade, mas daria conta. Ao chegar lá embaixo um estreito corredor se estendia a sua frente e uma água des-inodora, des-insipida e des-incolor lhe batia nos joelhos. Adentrou. Os enormes ratos cinzentos subiam e desciam pelos lados, na encosta das paredes úmidas. O silêncio é rompido pela segunda vez, agora por um inesperado espirro. Droga! Era a alergia, mas nem isso atrapalharia sua missão, se nem seus pais, sempre tão cuidadosos, disseram nada... O menino continua seguindo pelo corredor quando finalmente encontra o lenço de Lorraine boiando na superfície do líquido escuro, à direita em uma bifurcação, e nele, notara bem, havia manchas que não conseguira distinguir, mas não se lembrava de tê-las visto quando o pegou pela primeira vez, as coisas se tornavam cada vez mais estranhas... Talvez aquilo também fosse um sinal, o menino então entra pelo corredor da direita e dezenas de ratos enormes pulam na água fazendo um barulho semelhante a passos. O menino ouve, depois de algum tempo, algo estranho no silêncio e olha para trás instintivamente, é então que ele percebe que agora está... Sozinho?! Oh, não! Eles foram pelo outro lado - ele pensa, e sem vacilar volta pelo corredor escuro. Albert pára, por alguns instantes, novamente em frente à bifurcação, é quando escuta um som mais ao longe, trazido pelo eco, e grita que estão indo pelo caminho errado, mas não obtém resposta.
Albert, então, entra no corredor da esquerda, precisa alcançá-los antes que se percam. O menino anda e anda e a angústia começa a rondá-lo, e se não os encontrasse? E se algo de ruim os acontecesse? Seria por sua culpa. Que grande detetive! Em vez de encontrar pessoas, as perdia, em vez de resolver o mistério, o tornara ainda mais... Seu celular toca, no visor pisca o nome de seu pai, Albert treme e não entende a sensação de insegurança que o toma de repente como se algo nele despertasse, algo como um instinto antigo, um desejo de sobrevivência... Ele leva o aparelho a seu ouvido lentamente, e uma palavra sai confusamente dorida de sua garganta, como se ela também deixasse sua alma.
- Papa!
- Albert! Mon petit, onde estás?
O menino empalidece, teriam seus sentidos o traído? Estaria ele naquele lugar horrível... sozinho... desde o início? Logo imagens como lembranças ficam certas em sua mente - as pessoas se afastando, seus pais próximos ao canteiro, o umbro das árvores, os ratos - tudo fizera o terrível sentido do engano. Então o medo o arrebata, sua voz fraqueja e o frio o toma, ele agora reponde com desespero.
- Papa, estou na galeria do parque Heinst...
A bateria acaba, o menino olha para o aparelho inútil em suas mãos, rezando para conseguir encontrar o caminho de volta. O pavor agora se instalara em seu coração – lancinante - e o menino começa uma busca angustiante pela saída. Ele volta pelo corredor, pára mais uma vez diante da bifurcação, mas centenas de ratos parecem estar vindo da direção de onde ele veio e da que a perpassa, eles agora parecem pequenos demônios com olhos vermelhos e furiosos. Não há saída. Eles o encurralam e o forçam a seguir novamente pelo corredor da direita. O menino chora e seu pranto ecoa despertando algo mal, sua pele já começa a enrugar e ele sente sua cabeça doer, é então que encontra, finalmente, um lugar seco. E sobe a rampa de cimento com dificuldade, as roupas encharcadas lhe pesam, não é mais tão divertido.
Ao longe, próximo a uma outra bifurcação mais adiante, Albert tem a impressão de ver o corpo de uma menina, imóvel, encolhida no chão frio, mas seus óculos estão embaçados, e quando ele vai tentar limpá-los com sua blusa úmida as lentes escorregam do tecido e vão parar no chão. Albert ainda tenta reavê-los, mas estão inúteis, quebrados. Quando o menino levanta as vistas, lá está ela, encolhida, a sua frente, usa apenas uma peça intima com delicados babados cor-de-rosa, ela treme. Ele a olha, a princípio com temor, em seguida, penalizado pelo sofrimento de uma criaturinha tão frágil, se manifestam agora seus instintos fraternais. Lorraine contava quatro primaveras com esta, era-lhe apenas dois anos mais nova.
Albert se aproxima, faz um sinal com as mãos para que ela não tenha medo, que nada mais de ruim a acontecerá, ela responde apenas com uma frase que o deixa ainda mais comovido.
- Tenho... friiiiiiiio.
O menino então, sem pensar, a abraça aconchegando o corpinho da pequena no seu, e diz coisas que a acalentem, como que eles vão ser encontrados logo, que nada de mal vai acontecer, coisas assim. Ele também sente muito frio, e ainda mais agora que compartilha seu calor com Lorraine, por um momento chega a pensar que nenhum dos dois escapará a aquela situação com vida, é então que ele se lembra do lenço, o qual colocara em seu bolso, ele o pega e o entrega a menina, mas agora as manchas parecem mais evidentes, mais vivas, mais escarlates... O súbito sentimento de carinho e compaixão que o amortecera a pouco já se transforma em um terror mórbido, Albert reúne todas as suas forças para encarar novamente a menina, é horrível... A pele dela é fenecidamente branca e seus dedos e lábios estão levemente arroxeados. E há um outro detalhe, um de natureza ainda mais extraordinária - para não dizer aterradora -, a delicada peça de renda, a única que cobre seu rechonchudo corpinho, a qual mostrou-se aleivosamente rosa, é, na verdade, branca, mas de uma alvura maculada pela perversidade e sordidez de um monstro. Ao ver o lenço a menina dá um grito inumano, Albert se assusta e a afasta, mas a menina o encara furiosa e avança sobre ele pondo-lhe as gélidas mãos sobre o pescoço, roubando-lhe as últimas reservas de energia térmica, vital. Albert fica completamente paralisado, entorpecido, inerme. Seus olhos captam borrões do que seriam morcegos agitando-se no alto, essas imagens se confundem com as de dor e desespero que a menina lhe passa, o monstro que a havia arrebatado e lhe roubado a inocência e a vida, machucando-a e depois a abandonando para que morresse ali - o lenço era só uma lembrança, era assim que ele fazia. Albert pensa em seus pais, não quer mais ser detetive, e talvez nem possa ser mais coisa alguma, o mundo é um lugar tão feio, ele então fecha seus olhos encolhendo-se imitando Lorraine, mortificado por seus gritos... suas súplicas... seu medo... sua dor... sua solidão... seu frio... O silêncio.
Texto de k.t.
Olá Caterine!
ResponderExcluirAdorei o texto! Deixe-me falar do que mais me chamou atenção. Primeiro foi o começo, que achei meio perdido, um começo meio esquisito, difícil de entender o que acontecia de cara, mas logo depois de um tempinho a gente se encaixa ao texto e segue-se muito bem.
Em segundo lugar, queria falar do seu vocabulário, como já te disse, que é muito bom. Você utiliza palavras que geralmente só vimos nesse estilo de texto e isso, apesar de as vezes parecer previsível, caracteriza bastante o texto e acho que é muito positivo.
Atrelado a esse bom vocabulário, vem o controle que você tem do ritmo de leitura. Você escreve de forma que a leitura não corra solta e sem deixar o texto chato. Quando se escreve muito sobre pouca ação, as vezes deixa o texto parado demais e muitos leitores perdem o interesse, você sabe controlar isso, escrevendo o suficiente para enriquecer o texto e deixá-lo sempre interessante.
Por fim, tenho que parabenizá-la pelo final. Ele foi totalmente surpreendente e acredito que isso seja fundamental para um suspense, neh?
Realmente um texto ótimo, parabéns!