sábado, 13 de junho de 2009

CONFISSÕES





Anjos aspiram por libertarem-se. Anjos negros como a noite escura, e a escuridão é a essência da qual germina a luz que evidencia todos os males. Não são anjos, em sua pureza etérea eles não existem, são demônios e fazem de mim inferno, inconformados que eu os possua querem eles me possuir, a atormentarem, sádicos, minha frágil razão.

Nesse dias em que eu mergulho na minha mais profunda escuridão e tento enxergar minha alma, e me aventuro a indagar o que há de verdadeiramente mim no eu, o vazio, eterna chama, parece queimar-me mais intenso, arde num desejo absoluto de desejar.

É quando o mundo a minha volta já não me atrai nem me desperta. Dentro de mim a um tudo e um todo tão singulares, intrigantes e instigantes que não consigo fugir ao fascínio que me causam. Nesse momento, então, meu ódio só é tão voraz quanto o meu amor, e me consomem em par, inteira.

De repente uma forte dor me toma. Uma dor aguda. Uma dor que trans-passa o âmago de minhas angústias e a sinto também eu meu corpo, como se o mal-ser de dentro de mim se externasse em um mal-estar.

Sequer me atrevo a desejar a morte, sono eterno, pois, se ao dormir também nos vem o inconsciente à consciência torturar-nos com os nossos medos, na morte, então, viria o escárnio por tal covardia.

Há dias em que me perco, me desconstruo, me desespero...

Texto de k.t.

INSONE



“Em algum lugar do vazio, resulta em vã a espera pela luz inalcançável”.

Eles chegaram, com suas armas, exorbitando poder. Eles chegaram, vieram em tropa. Eles chegaram, são os gigantes e me vão esmagar. Eles chegaram, ai de mim! Tiraram-me as vestes, as máscaras e me colocaram diante de um enorme espelho para que eu me visse distorcida imagem do que dantes fui.

Não usaram argumento algum para me convencer, sequer se atreveram a me dirigir a palavra. Pra quê? Eu não os ouviria mesmo diante das circunstâncias, tanto fazia que fossem mudos. E, apesar de tudo, somente uma coisa me intrigava: Por que me incomodava tanto o maldito silêncio?

Já se passaram muitos dias desde aquele e o mesmo vazio ainda me ronda. Minha preciosa e sã mente divaga, voa, mas quando tento tirar meus pés do chão percebo que pesadas correntes seguram-me os pés, cerceando-me a liberdade. Às vezes ouço ao longe uma voz gritar meu nome, isso me angustia. Por que ela não cala?! Estranhamente não me perturba o medo, somente o frio é meu tormento. Aqui é tão frio! Frio como a saudade ou o esquecimento.

Pouco ainda me resta do meu passado, somente alguns resquícios de lembranças resistem ao isolamento. Gostaria de saber quais discórdias e inverdades me trouxeram a este lugar. Às vezes é tão escuro que mal consigo distinguir as sombras que passam de um lado para o outro por debaixo da porta. Às vezes elas chegam bem perto e então... A voz... Ordena que eu esperte. Logo eu, tão lúcido, tão vivo... Não entendo, não entendo mais nada.

Eu bem que gostaria de despertar desse sonho mal e rir de mim mesmo e minhas considerações inúteis, mas não posso, e por agora são tudo o que tenho, são tudo o que me faz resistir ou... Existir.

Texto de k.t.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

A MALDIÇÃO ILHINOI I


Uivavam os ventos, incessantes.

Anabel sabia que não podia acreditar em seus olhos, seus sentidos a traiam naquela madrugada, constantemente.

No breu, a fúria. Procurava alguma coisa na capela, perdida entre tantos papéis empoeirados. A branda luz da vela denunciava seu rosto pálido de olhos vivos, aquela angústia corroia seu coração atormentado e o tempo corria contra seus propósitos ainda obscuros. Lá fora uma tempestade assombrosa veio de encontro ao vilarejo, os relâmpagos eram como olhos luminosos de um demônio, espreitavam e esperavam para se aprazer com a desgraça vindoura; os trovões eram gritos de anjos horrorizados. A voz em sua mente não lhe permitia esquecer quão sua busca era imprescindível, debruçada sobre vários livros centenários aos quais lançava olhares de súplica e desolação. Maldição! Maldição! É preciso deter a maldição! - Tentava, ainda em vão, desvendar um terrível mistério, só assim teria alguma chance de...

Ouve-se um grito aterrador seguido por um pungente uivo, como se de quem o do que o emitira o pavoroso som rasgasse a garganta, ou uma alma estivesse sendo aprisionada por esta noite na mais profunda e desesperadora treva.

Já é tarde demais, eles saíram para caçar. - Ocorrera-lhe. Que os céus tenham piedade de sua alma tão jovem e tão imersamente plena de pecados, e se compadeçam de tantas outras que nessa desditada noite também se perderão.

Quando se é criança os sonhos nos são mais doces e os pesadelos bem mais assustadores. Anabel fecha os olhos e busca na memória algo que não sabe bem, mas que talvez a ajudasse a decifrar o segredo que ronda e anatematiza sua família atravessando séculos.

Contava cinco primaveras desde que ali chegara e pouco ou nada recordava antes disto. Brincava com sua boneca de pano no jardim quando, atraída pelo som do chicote – cuja voracidade consumia sôfrega, ardia e dilacerava carne fresca - correu até os fundos da antiga senzala a qual só utilizada para estes fins escusos. Dali fora se esgueirando até encontrar uma fresta na madeira profundamente fincada no chão, sabia que se fosse apanhada espiando seria rigorosamente castigada, mas a curiosidade superava-lhe o medo. Era um negro, provavelmente peça nova a ser amansada pelas mãos ávidas e cruéis do feitor. Ele chorava, se contorcia, gemia, praguejava em um dialeto estranho, o que não abalava - quão cruento - o carrasco. A mão do algoz era cada vez mais pesada, qualquer indolência deveria ser duramente sufocada, e, de repente, cessam as chicotadas. O homem de catadura inexoravelmente bravia e ainda insatisfeito em seu desejo de sangue pigarreia, passa a mão - que dantes empenhara rijamente o açoite - por sua testa banhada em suor, cospe no chão e olha com desprezo o infeliz escravo quase desfalecido - teria este ido ao chão se não estivesse acorrentado pelas mãos ao tronco -, ele então se afasta um pouco, vira-se, e quando torna é com o sorriso do tinhoso que tendo nas mãos um punhado de sal o joga por sobre as costas do negro, o sal corrói o os ferimentos, os gritos são ainda mais agoniantes. Anabel leva as mãos ao rosto, horrorizada, nesse momento, então, cuidadosamente, braços fortes e másculos a resgatam e guiam até a casa grande onde sua tia a estaria esperando no quarto.

Eulália lhe parecia nome de anjo, e deveras sua tia deveria sê-lo, pois era bela, mas não fazia desta beleza artifício, não tinha vaidades nem era frívola, olhar de quem procura rastros, apenas rezava e rezava, como se quisesse espiar culpas que com certeza não as tinha, era a gentil senhora que a acolhera com desvelos maternais em uma casa de homens com feições ásperas, barbadas e impassíveis.

O casarão era já bastante antigo, paredes grossas, alicerces profundos, de uma solidez arrogante, quase desafiadora. Enquanto o cerne do mundo renascia e se insuflava de novas luzes, tudo ali permanecera estagnado, com resquícios do ainda século XVII, tais como alguns móveis, a vasta tapeçaria e retratos dos antigos senhores portugueses legítimos, corridos para esta terra esquecida por Deus e desgraçada pelos homens e sua ganância, luxúria, crueldade. Sem contar com a capela, que se assemelhava a um casebre, com alpendres e tudo, onde se enterravam os mortos e se escondiam as riquezas junto aos santos. Os quartos eram no andar de cima, exceto os dos empregados que ficavam em uma dependência afastada do casarão, tal qual outras instalações como a casa da moenda, a casa da fornalha, o curral e a temível senzala, esta a de fato, de onde vinham barulhos estranhos à noite, batidas acompanhadas de sons que mais pareciam lamentos agourando a madrugada, às vezes festas pagãs que assustavam e incomodavam os senhores e quase sempre terminavam em sangue. Diante da garotinha se erguia uma enorme escada com degraus de madeira rangente, a subida era sempre o mais difícil, e então, finalmente, o topo. Logo Anabel avista as luzes do quarto de sua tia, já podia sentir o perfume suave de alfazema, o predileto dela, de ambas. Adentrou timidamente, a porta se encontrava entreaberta, sua tia não lá estava, havia saído há pouco e ainda deixara descerrados sobre a cômoda, alguns livros antigos aos quais consultara avidamente numa tentativa quase desesperada de sorver cada palavra do que estava escrito, devotamente. Não era costume, conhecimento era por demais perigoso nas mãos de uma mulher, sua tia era uma exceção e “Anabelinha” tinha esperanças de que um dia ela também seria. Eulália andara rabiscando algo, a tinta ainda estava fresca. A menina caminha lentamente pela alcova e se dirige até a janela larga e de cortinas brancas com as quais o vento brincava... ou brigava. Era a noite que já se aconchegava, invadindo o íntimo do lar e do coração dos homens Ilhinoi. Aquela não era sua casa, e sequer imaginava se tivera uma um dia. O breu devorava os últimos resquícios do sol famelicamente. Anabel avista os cavalos de seus tios partindo rumo ao vilarejo, a lua cheia surge como um novo sol a iluminar aqueles que vagam entre a escuridão.

Um uivo é percebido mais perto. Ela assusta-se e olha ao redor, apreensiva. Então, eis que como em resposta a suas súplicas, um clarão mais forte se faz através dos vitrais velhos e quebrados e ilumina sobre a mesa o objeto ao qual desejava, o artefato que motivara sua busca, a última esperança de um fim para seus temores, seja este qual fosse. O livro. O mesmo que instigara sua curiosidade há mais dez anos atrás.

Lembrou-o. Grande, de capa dura e acinzentada, se achava em cima de um velho baú de madeira, uma caixa retangular de face lisa. Suas mãozinhas o tocam delicadamente, é pequena demais para decifrar-lhe o código, mas talvez houvesse ali alguma figura, então, ela o abre e, para sua fatal surpresa, no meio de uma página amarelada há uma grotesca ilustração de uma terrível fera, algo similar a um lobo, e como jamais vira um lobo antes associou-a a um cachorro grande de olhos vermelhos e sequiosos, movidos pelo bestial instinto do atroz, e com traços humanos. Anabel arrepia-se, a figura parece alimentar-se de seu medo e tomar vida, ela então começa a andar lentamente para trás, tropeçando na ponta do tapete e caindo no chão. As sombras engoliram a tudo, exceto a ela que fica cara a cara com a misteriosa lua insólita, naquela ocasião ouvira o primeiro uivo que lhe gelara a espinha. Surge sua tia, exausta, trazendo nas mãos um castiçal de três velas e vai ao seu encontro, é quando Eulália percebe o livro aberto e constata pela palidez do rosto de Anabel o que se dera, e a fita atentamente. Mas seu olhar não é de reprovação, é de pena. Ela, então, aproxima-se de Anabelinha, a abraça carinhosamente e pede-lhe que guarde um segredo, tira do pescoço um pequeno crucifixo de prata e o entrega a menina.

A rotina da casa grande era monótona e sem sobressaltos, durante o dia o vai e vem de negrinhos atarefados, sua tia confortavelmente sentada na varanda cosia enquanto Anabelinha mantinha-se à sombra, brincava por perto, preenchendo algum vazio impreenchível na vida da jovem senhora. Seus tios só retornavam no final da tarde, passavam o dia vistoriando, contabilizando, confraternizando com outros usineiros também abastados, para eles uma viúva na família era um estorvo, peso carregado a duras penas, penas que incluíam Anabel, que era para esta uma espécie de consolo e resignação. Esta pasmaceira durou por algum tempo, muito tempo, e nunca mais se falara do segredo, segredo para se manter em segredo deve ser prudentemente aparentemente esquecido.

Então, em um belo dia quente, uma visita inesperada de um cirurgião-dentista, amigo de um dos tios e vindo da corte, quebrou de certo modo a rotina entediante, que logo tratou de incorporar a si o estranho e, os dois como um só, refez-se novamente o habitual. Mas, havia algo de terrível que imergia da aparente normalidade e rompia a gelidez das noites. Murmúrios, rumores surgidos na senzala, vindos de todos os cantos, faziam rir sombriamente os tios Belchior, Malaquias e Jerônimo, e empalideciam Eulália, atacando-lhe gravemente os nervos. Pelo menos duas noites do mês eram de pavor. Anabelinha percebera que sua tia andava estranha e atribuía isto de alguma forma aos falatórios das negras, os quais supunha, em sua inocência, se tratarem dos temidos ataques de índios selvagens que cercavam a região e por vezes invadiam as propriedades matando os moradores e destruindo tudo o que pudessem, o que a irritava profundamente que aquelas negras bocas-de-trapo trouxessem da cozinha, para sua frágil e dedicada tia, além da comida, mexericos e susto. A verdade é que não se precisava de grande tino para notar que Eulália possuía bem mais segredos do que o que compartilhara, e estes deveriam ser bem mais difíceis de serem esquecidos, talvez ainda fizesse o perigo. Qual? Arriscava-se tanto e constantemente, como quando esperava os cavalos dos Ilhinoi irem longe para que pudesse passar à menina um pouco do que sabia e que talvez lhe pudesse ser no futuro de alguma valia. Foram–se os dias e as coisas só pioravam, Anabelinha percebera que as noites de inquietação coincidiam com a lua cheia, quando então sua tia vagava pelo casarão como um fantasma, sonâmbula ou apenas envolta na letargia de uma espera incansável e angustiada pelo amanhecer.

O sol se punha, do largo alpendre Anabelinha observava o breu engolir do céu, pouco a pouco, as desmaiadas cores. Por fim, cansou-se. Levantou-se da cadeira de balanço num salto e adentrou correndo, subiu as escadas como que por urgência, de repente sentira uma vontade incontrolável de ir ter com a tia, mas, quando finalmente o topo, desacelerou. Seus passos pela passadeira foram cuidadosos, agora, bem mais que sua curiosidade o que lhe guiara fora o medo, tivera a impressão de que ouvira gemidos. Gemidos mórbidos. Agora o silêncio. O inexorável silêncio aumentava sua expectativa. Parou diante da porta do quarto de Eulália, mordeu de leve os lábios numa indecisão, olhou para um lado e outro - ninguém a vista, então, curvou-se levemente e espiou através da fechadura sem chave, quão vulnerável é a privacidade de paredes grossas e pesadas portas, se por apenas um orifício a decência é desnuda e o velado torna-se conhecido a um público silencioso e imóvel, Anabel, invisível espectadora aos personagens em cena. Espantou-se. Lá estava o estranho, Regis era o nome dele, descomposto, de fronte a janela, nu da cintura para cima, observava a vinda da noite com magnetismo. Eulália surge com o livro nas mãos, Anabelinha assusta-se só em lembrar da gravura horrenda e afasta-se por alguns segundos, mas logo torna a espiar novamente, sua tia entrega o livro ao estranho que se tornara ainda mais estranho, de uma estranheza comum aos homens Ilhinoi. A luz votiva da lamparina de azeite mal iluminava o cômodo, quando as trevas adentraram Anabel sentiu seu temor aumentar, se seus tios chegassem... Toda aquela situação era imprópria e muito, muito perigosa. De súbito, o estranho deixa cair o livro no chão e põe as mãos sobre a barriga como se uma terrível dor o afligisse, ele se encolhe, cerra os dentes e grunhe, a luz da lua batia em seu rosto, prenhe de mil demônios que nessas noites se espalhavam por sobre a terra, filhos da ardilosa escuridão. Eulália tenta ajudá-lo, ato que ele repele com uma aspereza violenta jogando-a no chão, não quer nenhum obstáculo entre ele e a fera refletida através de sua própria retina, no espelho de sua alma atormentada. Algo acontecera, algo mudara, algo imergira... Em sua face eram confirmadas as piores suspeitas (a fisionomia do estranho se modificara desde que ali chegara há alguns meses, o discreto cavanhaque dera lugar a uma barba grossa e mal cuidada; as sobrancelhas juntas e espessas, que dantes foram curtas e certas; e os olhos, límpido oceano, tornaram-se um Egeu melancólico e empedernido), ele não mais sofre, começa a vestir-se apressadamente, Eulália recupera-se do sobressalto e tenta uma nova aproximação também repelida, desta vez com indiferença, ela então cai de joelhos aos pés do estranho e suplica-lhe para que não saia aquela noite e diz-lhe que tivera um mau presságio, que seus irmãos sabiam... O quê? Somente o tempo e suas armadilhas fatais o diriam. Ele a olha com desdém e caminha em direção a porta, Anabelinha corre a esconder-se de trás de uma cômoda no corredor. O estranho sai. A menina escuta sua tia desfazer-se em prantos, ele tosse forçadamente e olha para os lados por precaução. Anabel encolhe-se ainda mais se refugiando na obscuridade. Ele desaparece no descer da escada bem quando os cavalos dos Ilhinoi chegam. Pouco ficam e logo partem outra vez, os quatro.

Mais tarde, faltando pouco para o sol novamente, Anabel escutara os cavalos retornando - três apenas. A menina não conseguira dormir aquela noite e, ainda assim, tudo lhe tinha ares de pesadelo. Vozes alteradas pareciam vir lá de baixo, sua camarinha ficava ao lado da de sua tia, onde esta não se encontrava com certeza, pois uma das vozes, reconhecera, era a dela. Anabel pegou um castiçal com uma vela solitária e esgueirou-se pela parede até, ocultando-se nas sombras, distinguir as feições dos interlocutores. Sua tia Eulália tinha os olhos vermelhos e fitava, desconsolada, as mãos ensangüentadas de seu tio Belchior. Ele não demonstrava dor alguma, logo Anabel concluiu que o sangue não era dele, pelo contrário, sua tia era quem sofria, como se aquele escarlate fosse o seu próprio, saído de suas veias, e com este vertida também fosse sua vida.

Lembrou-se de, meses depois, ajoelhada diante o túmulo de Eulália Ilhinoi, prometer vingança?! Não, justiça.

Os anos se foram passando, eles não a notavam, era só mais um rosto servil. Anabel, que apesar de sua aparência alva, delicada e de uma fragilidade inocente de quase-infância, não devia nada ao temperamento dos homens que a cercavam, nem em astúcia nem em audácia. Certa tarde, aproveitando-se de sua descuidada liberdade, fora sorrateira até a alcova de sua fenecida tia procurar algumas respostas. Subiu as escadas com precisão para que estas silenciassem, todos os seus movimentos tinham que passar despercebidos às intrigas das mucamas (as quais não pensariam duas vezes em levar quaisquer de suas ações até os ouvidos dos abomináveis tios, numa ilusão inútil de alforria). Detestava as negras, detestava a escuridão que havia nelas estampada na carne e conspurcada no espírito, se é que o tinham. Sentia asco de sua luxúria, repúdio de suas crenças pagãs e medo de suas artes profanas e feitiçarias. Detestava! Detestava! Detestava!... E detestaria ainda mais quando, na devassa a intimidade de Eulália, descobrisse no sangue desse povo o cerne de sua desdita. Quando diante da pesada porta de madeira, parou por alguns instantes, lhe assaltaram a mente lembranças, meio vagas meio impertinentes, algumas talvez já aviltadas por sua imensa inventividade, esta última lhe fora de grande serventia para suportar a solidão holocáustica que se instalara em seu peito e o desesperante vazio que lhe consumira todo este tempo em introspecção e apatia. Fechou os olhos franzindo levemente o nariz, balançou a cabeça com insistência de um lado para o outro até que suas idéias fossem claras novamente, precisava se concentrar em sua missão, falhar resultaria em conseqüências terríveis para ela e a humanidade. Assim, certificou-se de que a porta encontrava-se de fato trancada tal qual imaginara e sem demora dirigiu-se até a última gaveta da cômoda do corredor, retirando de lá a feia e enegrecida chave - um terço de segredo. O cômodo ainda continha resquícios do cheiro aconchegante da tia, que contrastava com o mofo e a umidade. Anabel abre as janelas para que ar e luz solar adentrem, no entanto a luminosidade, ainda mais que a penumbra, evidencia a ausência ali presente. Ela caminha até a penteadeira de finos detalhes em arabesco que contornavam o espelho e ressaltavam as extremidades das gavetas, a qual ficava de frente a janela e por sobre onde ainda havia sido deixada despropositadamente intacta uma escova de cabelo de sua tia. Em um gesto quase automático, Anabel a toma em suas mãos e começa a escovar os negros fios longos, lentamente, mirando-se na face espelhada a sua frente, sorvendo sua própria imagem, perdida em um quase sonho, narcisando seu rosto perfeito. De repente a lembrança da tia lhe assedia mais viva e inexorável, ela vê o reflexo do céu límpido azul lá fora, sem maculas, mas a redonda sombra em sua retina é noite. Isso a assusta. Ela larga a escova no chão e se afasta utilizando-se da frase que tantas vezes ouvira sua tia pronunciar: Beleza não é dádiva, é desdita! – replica ela à tentação da vaidade, mordaz serpente a distraí-la mais uma vez de seu imprescindível dever. Principia então a busca, pelo quê exatamente ainda não sabe, mas saberá quando encontrar. Abre baús, puxa gavetas, folheia velhos livros, e nada. Revira agora as almofadas e o colchão, olha debaixo das coisas, já desperdiçara muito tempo e, sem que sequer percebesse, o sol já se punha tingindo de vermelho-sangue o horizonte. Somente quando ouvira os cavalos de seus tios voltando é que se dera conta. Ela apressa-se, tenta botar as coisas em ordem aparente, fecha a janela com sobressalto, tivera a impressão de que fora vista por um dos tios, abre a porta e sai, porém, quando vai novamente trancá-la, percebe que esquecera a chave sobre o toucador ao lado da cama e volta para buscá-la, mas quando chega outra vez na porta avista a larga sombra de Malaquias na escada e entra com o coração na boca, passa a chave na porta e se esconde debaixo da cama. Poucos segundos com perspectiva de séculos e Anabel ouve passos estacionando do outro lado da porta, seguidos por batidas de mãos abertas, que mais se assemelhavam a violentos empurrões. Anabel aperta com força o crucifixo que sua tia lhe dera, o qual traz sempre consigo, e cerra os lábios para asseverar o silêncio. Resmungos irritados precedem uma seqüência de batidas ainda mais fortes, e outra, e outra... Com o impacto das batidas o chão e as paredes estremeciam, contudo Anabel sente algo cair sobre si. Encontrara, os manuscritos de sua estimada tia. Teriam continuado as pancadas até que as velhas dobradiças cedessem, mas uma pobre negra infeliz que passara por ali mudara o rumo dos acontecimentos e da ira de seu senhor. Quando a vê, Malaquias a interpela duramente.

- Viste alguém entrar aqui, negra? – com impaciência.

- Não, sinhô.

- Tens certeza?

- Tenho sim, sinhô.

- Acaso julgas que sou cego, pois se vi alguém na janela deste... – passa uma das mãos ásperas sobre o queixo e olha o cômodo com um quê de assombro. Ele então deixa a pobre cativa em paz, abaixa-se e põe um dos olhos na fechadura, não há nenhum ser vivente lá dentro. Assim sendo, ele se afasta, coça a cabeça, intrigado, e sai como uma enorme interrogação.

Anabel espera ainda algum tempo, ela então se arrasta com os papéis até sair debaixo do móvel, porém, devido a incalculada altura deste, e agravado pela escuridão, bate com força a cabeça na madeira da quina. Um filete de sangue desce-lhe na testa, mas o misto de medo, alívio e contentamento quase lhe dissipa a dor, abre com cuidado a porta, mas não resiste, volta e se deixa estar a contemplar-se. Anabelinha morta, mira-se Anabel, com os papéis sobre o peito como que a galardoar a irremediável perda. Sua tia estaria orgulhosa dela agora? De onde quer que estivesse. Nesse momento o vento bate com violência na janela produzindo som semelhante a uma lupina lamúria. Ela esconde os papéis embaixo das saias do vestido e sai.

A aurora descortinara a tensa madrugada fazia pouco. Desceria para o desjejum como de costume, exagerara um muito no pó de arroz numa tentativa de esconder as olheras, que importava! Eles não a reparariam mesmo. A vivacidade enérgica da menina desaparecera à medida que desabrochavam seus primeiros traços de mulher e uma palidez melancólica dissimulava de passividade seu semblante, era como uma flor de estufa, magnífica e desnatural. Ardia de cólera por dentro, não precisava sorrir ou demonstrar contentamento algum, nem mesmo diante de estranhos, bastava permanecer assim, despercebida, e isso Anabel fazia bem.

O insípido aroma de bolo de fubá não lhe despertava vontade, o podia sentir ainda da escada, descia sem pressa. E, antes que seu pé tocasse de último o chão, vira seus tios saírem de carranca, sem uma palavra. Não houve expectativa, apenas de relance tivera a impressão de um olhar desconfiado de Malaquias. Eles se foram.

Somente depois, em seu quarto e por alguns instantes, se permitira atribuir significados para aquele gesto, estaria ele confabulando suspeitas? E se tivesse colocado alguém de vigia? Precisava ter ainda mais cuidado, estava cercada de lobos por todos os lados.

Pobre tia Eulália, um anjo martirizado por algozes inumanos muito além de sua limitada compreensão humana, uma natureza femínea e frágil, ousou alçar um vôo ícaro por sobre o tenebroso abismo hadiano, domínios aos quais julgara conhecer, mas a alma humana é terra-sem-lei, ininteligível e inopinável. Malditos sejam aqueles que com seu sopro de treva lhe extinguiram tão preciosa chama, a da vida. Agora as peças se encaixavam e tudo começava a ter sentido.

Anabel lia desordenadamente as anotações da tia com uma atenção impaciente. O sol já ia alto, passara a chave na porta por prudência, deitada de bruços por sobre o chão de madeira, não conseguira dormir toda a noite, sentia-se vivendo em um pesadelo constante, presa em um labirinto sem heróis, somente monstros e o imprevisível.

Alguém bate na porta e a arrebata de seu furor, de súbito. Ela se levanta, esconde rapidamente os papéis dentro de um livro e o guarda em seu baú. Vai até a porta, destranca-a trêmula, não de medo, mas de uma apreensiva e inquietante ansiedade, e a abre... Não há ninguém lá fora.

Os anos seguintes foram de provações e perdas para os Ilhinoi. Parecia que a nevoa do infortúnio descera por sobre aquelas terras, os escravos morriam de uma misteriosa peste, que surgia de repente, e de repente também se sumia e ninguém entendia de onde vinha. Havia também mais acontecimentos de estranha natureza, coisas do tipo animais que sumiam ou apareciam mortos brutalmente, incêndios nos paióis, pragas nos canaviais e nas lavouras de café, dentre inúmeras outras mazelas que trouxeram para a fazenda Ilhinoi um novo declínio. Só o que se falava nas conversas-de-borralho era na “maldição Ilhinoi”.

- Isso é arte do fantasma da Sinhá morta. – a negra gorda dizia, tampando a panela.

- Qual! Só se esta já estiver bem encarnada. – outra respondia, incrédula.

Isso não afetava Anabel, achava ainda ser pouco perto do que os seus desprezíveis tios mereciam. Planejava, desejava, esperava por um momento certo para sua vingança, a derradeira, e este nunca surgia, então, para seu consolo e desespero, no dia do seu décimo oitavo aniversário, veio-lhe a galope o amor.

Um primo, vindo das bandas do Rio de Janeiro, trazia-lhe uma carta a qual lhe participava a morte de seus pais e uma modesta herança em bens na capital, o que lhe valeria já um dote. Anabel não derramara uma única lágrima por aqueles aos quais não reconhecera afeto, precisava guardar suas forças para enfrentar monstros maiores.

No início, o segundo estranho não lhe despertara coisa alguma, nada se alterara em sua pseudo-esquizoidia permanente. Mas, aos poucos, a presença de Igor Fernandes Ilhinoi passou a incomodar. De certo modo ele era uma ameaça a seus tão bem traçados planos, não deveria haver testemunhas... O temperamento do jovem era calmo, nas longas tardes de ócio entregava-se a leitura de literatura e ciência. Anabel reparara algumas vezes, por acaso (e o acaso é o melhor aliado de quem encontra o que pensa que não quer achar), seus tios comentando zombeteiramente esse hábito do primo. Soube mais tarde que este havia estudado alguns anos na corte, o que explicaria sua natureza se opor à selvageria que parece correr nas veias dos homens desta terra. Definitivamente ele não era como seus tios, parecia ainda ter uma alma.

Os primeiros dias foram suportáveis com determinado esforço, mas logo a simples idéia de vê-lo já a fazia sentir coisas estranhas, um misto de euforia e algum tipo de medo natural profundo que jamais antes sentira. Pouco a pouco fora sumindo das vistas dele, recolhia-se mais cedo, fazia as refeições no quarto, inventava mil desculpas para não ficar. Era inútil. Os olhares dele sempre encontravam formas de alcançá-la e a abalavam de maneira vertiginosa, como se em queda. Mal sabia ela quão próxima chegara do abismo.

Como era de se esperar, veio a lua cheia. Anabel podia de sua alcova ouvir os passos angustiados da tia pelo casarão. Era só impressão. Não havia fantasmas naquela casa, qualquer espírito absidiante que pudesse habitá-la já o fazia em uma forma humana, ou em três. E naquela noite decidira não dormir, deixou-se estar na janela por alguns instantes, sentir a brisa fresca que vinha beijar-lhe o corpo com ímpetos de amante. Ela então segura o cabelo com as mãos livrando-lhe o pescoço e fecha os olhos como se a si preparasse para um salto no lago profundo e quieto da noite.

Na madrugada seguinte acordara atordoada de um terrível pesadelo e lá estava ele, o segundo estranho, parado e em pé ao lado de sua cama. Anabel não quis expulsá-lo, mas e se alguma negra o tivesse visto entrar? Estaria perdida! Pela primeira vez não sabe o que fazer, e pela primeira vez também o sabe que não precisa sabê-lo e esse pensamento a conforta. De repente uma ádvena sensação de segurança lhe invade, não estava mais sozinha. Anabel deixa-se contemplar, destarte se entrega ao gozo morfético já sem nenhum pudor.

Nas noites que se seguiram o segundo estranho repetira a façanha, recolhia-se aos seus aposentos após o jantar e quando o enorme relógio de pendulo, peça raríssima que ficava na sala, soava a décima segunda badalada, pegava o castiçal com uma vela solitária e se ia esgueirando, sorrateiro como um gato, até o quarto de Anabel. Esta fingia dormir para não estimulá-lo no perigo. Era inútil. A uma tenra chama sua beleza imergindo das sombras se fazia ainda mais expressiva, a aura serena do sono em seu semblante atraia-no como por encanto e lhe proporcionava algum prazer secreto que só os amantes conhecem, a delícia do desejo que precede a posse, sentia-se como o próprio deus do amor diante sua preciosa Psiquê. Uma noite, cansada de fingir, ela o esperara desperta e ansiosa, porém ele não viera. Cogitara ir retribuir-lhe as visitas noturnas, mas não ficaria bem, então decidira ir apenas até o corredor na esperança de encontrá-lo perdido, entretido talvez, em algum lugar do ancião decrépito que era aquele casarão. Levantou-se, fôra até a porta, pôs as mãos sobre ela, mas antes que a abrisse escutara um pigarro, inclinou-se e observou pelo buraco da fechadura, tratava-se de seu tio Jerônimo em um ataque de insônia, sentira um estranho alívio por ter sido esta a razão de seu “abandono”. Anabel torna ao seu leito e dorme tranqüilo sono.

As terras Ilhinoi eram vastas e compreendiam dois rios, que a uma certa altura se entrecortavam, e um deles tinha uma bela e deliciosa cachoeira em sua nascente, a qual formada de pequenas e rústicas piscinas naturais. A queda-d’água derramava-se por sobre as pedras largas e naturalmente esculpidas pela força hidráulica. Quão magníficos os artifícios da natureza mãe, dispunham-se umas sobre as outras por ordem de tamanho, a primeira, no alto, mal comportaria o suficiente para saciar a sede de um pequeno pássaro, no entanto na última, a partir da qual se seguia o corpo do rio em seu curso, poder-se iam banhar dez homens sem desconforto. O sol fustigante ardia, sufocava, despertava. Anabel sentira uma vontade arrebatadora de banhar-se naquelas águas, de seu corpo saciar a sede, ou mitigar a fome. Naquela manhã sentia-se como se em febre, o calor que lhe vinha abespinhar de fora para dento nada se comparava ao que lhe já afligia, e muito, de dentro pra fora. Então, acompanhou-se de uma mucama, a qual depois tratara de deixar de espia na mata, e partiu rumo ao cristalino fluido vital oriundo das entranhas da terra. Ao despertar, Igor perguntara a um negro, do qual comprara a confiança, sobre Anabel. O escravo respondera que a sinhazinha Ilhinoi tinha se ido banhar num rio perto e indicou-lhe o lugar exato.

Anabel imergia e emergia. Tudo se achava calmo. Coberta pelo lençol-flume o mundo parecia dissociar-se, sentia-se mais próxima de sua própria natureza. O som módico e difuso da queda-d’água parecia-lhe vir distante e acalentava-lhe o espírito constantemente inquieto.

Apesar de sentir-se tentado, o segundo estranho não tivera malícia suficiente para ir até lá. Anabel retorna - pele fresca, cabelos soltos e ainda molhados. Igor a esperava com mal-disfarçada ansiedade, desejava esclarecer os acontecimentos da noite anterior, o que não lhe fora possível. Ela passa pelo segundo estranho fria, sequer lhe dispensa olhar, a cachoeira era onde costumava ir com a tia nos dias quentes, lá aprendera muito sobre ciência, fisiologia e botânica, e fora aquela lembrança que reavivara em sua memória seu legado - a vingança -, seu coração só estaria livre no dia em que o último Ilhinoi maldito não mais estivesse por sobre esta terra. À noite, o jovem, depois de muito ensaiar seu discurso, fora até o quarto de Anabel, como de costume, esgueirou-se nas sombras, não havia ninguém insone além dele. Igor parou em frente à alcova de sua amada por alguns instantes, respirou fundo, pôs a mão sobre a porta fazendo leve pressão e... para sua infeliz surpresa, a mesma se encontrava trancada.

E assim a distância persistira angustiante por dias, insuportável por semanas e, quando inadmissível já contava um mês, o jovem decidira dar um basta àquela situação toda. Precisava vê-la, tinha urgência em compartilhar-lhe os sentimentos que há muito o sufocavam, ansiava por uma resposta. Mal sabia ele que em vez de uma as teria muitas, e para perguntas as quais jamais cogitara fazer e nem as julgara fazíveis. Após uma pequena refeição vespertina, atravessara a discreta ante-sala e a larga sala, subindo por fim a escada. Tinha um certo desdém, falseando quão lhe castigava aquele peso enorme a oprimir-lhe o peito e a constringir-lhe de angústia a garganta. Quando se viu fora das vistas daquela multiplicidade de globos brancos, destacados num todo escuro, apressou o passo, sua altivez dera lugar a uma impaciência vigorosa, instigada pala paixão por si e por ela - amava-se ao seu ego e a amava por opor-se a ele. Parou novamente em frente à porta do quarto de Anabel, como fizera na noite anterior sem sucesso. Bateu três vezes, porém, como não obtivera resposta, empurrou-a, a porta, com ímpeto. Aquilo já ultrapassara todos os limites...

A alcova se encontrava insolitamente vazia, ela não estava lá. Igor pensou em sair como entrara, mas seu orgulho e o cheiro suave de alfazema o prendiam, então se deixou estar sorvendo a aprazível fragrância e reconstruindo em sua mente a imagem adorável de Anabel adormecida. Sentou-se na beirada da cama e tomou em suas mãos um dos travesseiros da moça, apertou-o, e em meio a doces delírios fora que avistara de relance o que lhe pareceu ser um livro mal-guardado dentro de um baú. Não deu importância, a princípio. Mas depois lhe veio a vontade. Ele recoloca com cuidado o travesseiro onde encontrara e vai em direção ao velho baú.

Anabel, que não fora longe, retornava. No caminho, seu coche é parado pelo som de pequenos sinos, ela então se inclina para olhar, se trata um velho lazarento apelidado pelos moradores da vila de “o velho da gruta”, pois, devido ao escárnio por sua doença, o pobre homem que dantes fora um honrado carpinteiro, agora se vira reduzido a um pobre mendicante, exilado do vilarejo abrigava-se em uma velha gruta perto do rio, condenado a vagar feito um fantasma em uma ainda existência pior que a morte, até que seus dias nessa terra expirem.

- Senhor Deus, lembrai de nós; Senhor Jesus, olhai por nós; Virgem Santa, rogai por nós; Senhores sãos, apiedai-vos de mim. – dizia o velho dando as palavras um ritmo tão triste quanto seu sentido, e, aproximando humildemente do coche, estende a mão direita onde lhe caiem algumas moedas.

Igor retira-o, o livro, com cuidado, no baú encontravam-se alguns vestidos e o alfarrábio enroscara-se fesceninamente em um espartilho, na tentativa de desvencilhá-lo o jovem acaba por, em um movimento brusco e descuidado, esparramar pelo chão folhas amareladas rascunhadas a mão. A letra era pequena e primorosa, ele então despreza o velho livro, abaixa-se e se põe a recolhê-las. Antes que perceba, seus olhos já vasculham a superfície lisa com um intruso interesse, e após uma rápida avaliação da gravidade da leitura, Igor corre até a porta e a fecha com avassaladora ansiedade.

(...) quando a grande bola amarela surge alumiando, o mal se espalha irrefreado pela terra, (...) o efeito do magnetismo desta esfera irrita os mares e desperta nos homens tocados por algum demoníaco impulso, a terrível besta metamorfizada, a qual os cativos vindos da África chamam Moru (...).


Anabel se detém por alguns instantes a olhar nos olhos daquele homem, tentava enxergar algo que não sabia bem, talvez a sombra da morte neles, mas não havia nada além resignação e tristeza. O velho agradece e segue pela estrada em sua cantilena fúnebre.
Mal supunha ela que nesse ínterim de sua ida quase furtiva ao vilarejo um terço de seu segredo estaria sendo devassado.

(...) Moru, Moru... Esse nome me aterroriza. Desde que descobri seu verdadeiro significado tremo cada vez que ele assalta minha mente como que a lembrar-me de que não pode ser ignorado, é também de mim parte, irremediável, está em meu sangue. (...) pior é a incerteza que me fica quando ele se vai com eles, temo que alguma desgraça aconteça, a natureza humana é naturalmente trágica e sempre se encaminha para o infortúnio (...).

O catadura do jovem esbranquiçara, seu semblante antes vigorosamente tenro fez-se tenso. Quem teria escrito aqueles “devaneios” - indagava-se. Anabel certamente teria muito que lhe explicar.

E ele continua a perscrutar o imo de quem nem sabe.

"(...) quão terrível o segredo. E quem, infeliz, ousar desvendá-lo sofrerá a dura pena para esta transgressão. Somente a morte silencia, somente a morte... A ganância do homem é que lhe dá a ilusão de ser um deus, e é esta mesma ganância que o reduz de volta a suas origens nada divinais, ao irracional, a ferocidade e, a posteriore, ao pó. Ao que eu soube, fora no final do século passado que caíra por sobre meu bisavô, Frederico Ilhinoi, a terrível “maldição”, condenando-o a se transformar todas as noites de lua cheia em uma abominosa besta movida pelos mais primitivos e abjetos instintos: a fome e o desejo. Não sei ao certo, mas creio que a devassidão e a perversidade de meu antepassado para com os cativos tenha sido o que motivara tal “maldição”. Certa vez, interrogando aos escravos mais antigos, obtive (...) Não cri, estes negros tem sempre uma inclinação, se não prazer, em infamar seus senhores, então decidi que principiaria a sondar pelo vilarejo - com discrição obviamente - às beatas, aos anciões... e, em última instância, aos bêbados e mendicantes, se se fizesse necessário. Não fora tanto, ou quase. Contudo descobri uma coisa curiosa, uma peculiaridade, digamos assim, nas relações humanas. Existem dois tipos de pessoas que podem saber muito sobre nós: as que nos amam e as que nos odeiam. E fora pela boca de um dos mais egrégios inimigos dos Ilhinoi que obtive preciosas informações sobre a “maldição”. Pela manhã acordei disposta e fui ter com Jerônimo, pedi-lhe que me levasse ao vilarejo, pois necessitava de me confessar. No início ele relutou perguntando-me que pecados poderia eu ter acumulado em tão pouco tempo, visto que se passara apenas duas semanas desde minha ultima visita ao padre Olavo. Repliquei. Disse-lhe que somente os pecados com os quais nasci já me valeriam longas novenas de penitência para o resto dos meus dias e, ainda assim, não me seriam bastantes para expiá-los. Consentiu. Deixou-me nas portas da modesta igreja e retornou até a ferraria, na entrada da vila, havia tido problemas com a ferradura de um dos cavalos que lhe deixara há alguns dias em situação de grande embaraço. Atravessei o templo como se apenas fosse um corredor entre mim e a verdade, a missa ainda não se havia iniciado, saí discretamente pela porta dos fundos e caminhei pelas vielas sem rumo, mas meu instinto me guiava e me guiara até as portas de um velho casarão de visível abandono, carcomido pelo tempo e suas intempéries.(...) pobre homem! Tinha deveras razões para odiar Frederico Ilhinoi, e o ódio é uma ferina serpente a lacerar a pele e envenenar a alma de quem o sente, corrói dentro e fora. (...) quem o visse entenderia minha apiedação, ele que a um primeiro momento não me pareceu nada mais que um ancião esmoleiro, com vestes surradas e sujas, olhos fundos e sequiosos, (...), já fora um senhor de engenho, como meu bisavô, e agora só tinha de posses dois únicos bens: o casarão e a vida, ambos em mesmo lastimável estado de degradação. De acordo com as informações por mim recolhidas, quase sem nenhum esforço, porém com muita destreza para que o velho não desconfiasse de que o sangue que ele desejaria beber em sua caneca amassada de latão corre em minhas veias, Frederico Ilhinoi era um nobre português bastante abastado e que gozava de um prestigio irreprochável na corte. Porém, o outro, o que se não dizia, o apenas murmurado em conversas informais e escarnicantes - meu bisavô - tinha ele uma predileção doentia por crianças, em cuja aura da inocência parecia aumentar ainda mais seu ignóbil desejo de posse pelos mirrados corpos. Murmúrios... Mas murmúrios viram boatos, estes por sua vez se crescem são capazes de destruir a honra construída em séculos e aniquilá-la por gerações. Mandaram-no, pois, para cá. As crianças daqui não têm nome, berço, ou valor algum, pequenos selvagens frutos da terra, por ela gestados e por ela também fatalmente devorados. Minha bisavó, que como costume, casara muito menina, era de frágil saúde, não podia ter sérios desgostos sob pena de não segurar na barriga os filhos Ilhinoi “puro-sangue”. Para assegurar que a discórdia não violentaria a aleivosa paz de seu lar, meu bisavô recorria com freqüência a uma crueldade des-humana, o velho senhor era capaz de atrocidades inenarráveis... Ó céus! Eu soube - isso com os cativos - que meu bisavô, e causa-me asco que ele o seja, costumava queimar vivas as escravinhas prenhes de seus bastardos, (...) e, em noites de mau-gênio, crianças estouravam ao calor das chamas em fornalhas do engenho. Então, contou-me o velho, houve uma noite de tempestade intempestiva vinda em período adverso como que por “mandinga”, e o barulho da chuva amortizou o som dos tambores. Não se sabe por que artes demoníacas ou maligno sortilégio, fez-se a “maldição”. Por dois longos e penosos anos, adveio uma tormenta cáustica na vida de Ilhinoi, o processo de transformação na “coisa” que ele não dizia o nome, era extremamente doloroso e ele a temia. A fazenda Ilhinoi entrou em declínio, o trabalho de uma vida inteira se esvaía sem que ele nada pudesse fazer para contornar, sabia que não podia confiar nem em si mesmo, e isso Frederico Ilhinoi não conseguiria suportar. Houve, então, uma disputa por terras com uma outra família influente da região, a qual pertencia o “nobre mendicante”, fora quando Frederico teve a idéia de utilizar sua maldição contra seus inimigos e, após um verdadeiro massacre, triunfou, aprendendo a dirigir sua fereza a onde ia seu ódio. Confesso que fora difícil disfarçar meu estarrecimento e dissimular minha empatia pelo pobre velho, mais uma vítima da perversidade de meu antepassado. Contudo, agradeci-lhe a atenção, dei-lhe algumas moedas e tornei a igreja a tempo do amém. Pouco depois Jerônimo tornou e me encontrou ajoelhada no confessionário, padre Olavo mandou-me ir em paz e nos pusemos a caminho da fazenda, porém, quando em frente a ferraria, não sei por que curiosidade, pus a cabeça para fora da liteira e percebi que dali emanava um cheiro acre de luta, de luto , de sangue... E havia sim, em pequena quantidade, em frente à oficina, um escarlate vivo, intenso, pavoroso e palrador, dizia-me que não era a fera que dominava o homem, ela apenas
imergia das profundezas mais obscuras de seu íntimo povoado de negrume e horror".

Anabel chega no expirar dos últimos raios do sol, ela dispensa a mulata e sobe a passos fadigados. A um displicente olhar, a alcova aparentava-se intocada à aura de uma pseudo-solitude, a escuridão adentrara seus domínios. Anabel se dirige até o criado-mudo, ao lado da estreita cama, e sobre ele acende a sólita vela. O segundo estranho deixa-se ocultar nas sombras a observá-la pela defeituosa ótica do mal-entendimento. Ela, então, se senta na beirada do módico leito e põe-se a tirar as botas, em seguida afrouxa os cordões do espartilho, respira livremente por instantes, é quando escuta um ruído lá fora, Anabel se levanta e vai até a porta, mas antes que a abra Igor corre até ela e a impede pondo sua mão contra a porta, energicamente, e contra o frágil corpo dela o dele, másculo.

- Não faças... isto. – ele ordena.

O tom imperioso, do qual ele jamais dantes fizera uso, o timbre grave, e a atitude inesperada do segundo estranho a desorientaram, mas não a intimidaram.

- Igor! O que fazes aqui? – com temerária surpresa seguida por exaltada indignação – Perdeste o juízo, e se alguém te tiver visto...

Ele faz um sinal para que ela silencie e ficam a escutar sons no corredor, passos se indo, desaparecem.

- Afastemo-nos da porta, não devemos ser ouvidos. – ele diz puxando-a pelo braço até o centro do aposento. – Agora não poderás fugir de mim.

- Não tenho razões para fugir de vós, senhor Fernandes. O que desejais de mim?

- Desejo que me ajudes a entender como, senhorita Ilhinoi, pode a face de um anjo ser máscara para uma alma tão perversa.

- Não compreendo.

- Permita-me ser mais claro.

O segundo estranho a puxa para si com ímpeto e seus lábios sequiosos procuram os dela, em vão. Anabel vira o rosto.

- Vês? Perversa.

- Perversa, eu? Por resguardar a minha honra? Bem se vê que não sabeis nada de perversidade. Oh! Como poderia? – com sarcasmo. O mundo, senhor Fernandes, é bem mais medonho que o fervilhar da corte ou da capital, onde existe ainda alguma civilidade. Esta é uma terra de selvagens, onde os homens se encontram mais próximos de sua natureza ruim. – ela tenta se desvencilhar, mas os braços dele são mais fortes que sua vontade.

- Conheço muito bem o monstro que dorme ao lado do coração dos homens, senhorita Ilhinoi, mas isso não vos isenta.

- Deixai-me em paz. – ela suplica.

- Sabeis o que sinto...

- Calai-vos! Vós não sabeis o que dizeis...

- Preciso... preciso dizer-te...

- Calai-vos!

- Amo-te.

Faz-se um profundo silêncio. Em seguida Anabel se afasta, ele não a detêm, em expectativa.

- Fazei-me um favor, senhor Fernandes, - diz secamente - saí de minha alcova imediatamente ou serei forçada a queixar-me com meus tios que estais a me importunar.

Ela então se vira de costas para que o segundo estranho não perceba quão esforço está fazendo para fingir-se indiferente.

- A mim não parece que muito se importam. – com veneno na voz para resguardar o coração dilacerado, metáfora para vaidade ofendida.

- Desafie-os, pois. Mas asseguro-te, senhor, que os Ilhinoi costumam ser muito cruéis com lhes subestimam.

- Concordo. Esquecestes apenas de uma coisa, Anabel, também sou um Ilhinoi e não admito ser subestimado. Quem escreveu isto?

- Onde encontraste... Oh, céus! Mexeste em meu baú. – a surpresa dá lugar a uma indignação ferina - O que procuravas? Meus vestidos decerto não lhe ficariam bem.

- Estais te excedendo, senhorita Anabel Ilhinoi, não vou tolerar que me insultes...

- Nem eu, que vos imiscuais em meus assuntos. Retirai-vos de minha alcova, já!

- Quem é este tal Moru? O que tem ele haver com os Ilhinoi? Eu exijo saber sobre essa tal “maldição”?

- Leste! – Anabel desarma-se, senta-se em seu leito, põe a cabeça entre as mãos e respira fundo para em seguida prosseguir - Vou contar-te. Mas que desde já estejas advertido que as conseqüências por esse conhecimento podem ser as mais terríveis. Deus sabe como desejei não envolver a mais ninguém nessa trama sórdida! Mas vós não me destes escolha. Abri, pois, a vossa mente, as revelações a seguir serão tão desoladoras quanto veras. Estes escritos não são meus, pertencem à Eulália Ilhinoi, a mulher mais pura e boa que Deus já colocou por sobre esta terra...

Igor senta-se, sem perceber, na cadeira ao lado da cama de Anabel, pondo-se a escutá-la atentamente.

A princípio, ele riu, mas a curiosidade lhe fora despertada e o conduziria ao pior dos abismos, o que há em si mesmo, inoculado, a fereza, a perdição.

- Então os seus tios são homens-lobo que em noite de lua cheia saem por aí cometendo crimes... - Ele ri - Anabel, esses manuscritos me são razão suficiente para acreditar... Acreditar que a sanidade mental de Eulália Ilhinoi estava seriamente comprometida. Homens-lobo, oras vejam, que tolice!

- Como podes troçar de algo de tamanha severidade? Acaso não percebeste o que se passa a tua volta? Olha para este lugar, não há vida aqui, nada cresce, nada floresce, a madeira está podre, o ar é venéfico... Isso é um túmulo, senhor Fernandes, e todos nós estamos enterrados nele.

-Não, não minha querida, não estamos. Apenas Eulália é que está, junto com todas suas fantasias assombrosas. Nós estamos vivos.

- Igor, ajuda-me. - Anabel ajoelha-se e põe a cabeça sobre a perna de Igor que lhe acaricia a farta cabeleira, docemente.

- Acalma-te. Não vou permitir que nada de mal te aconteça.

- Ajuda-me a vingar a minha tia e todas as demais vítimas destes monstros sanguinários, precisamos impedi-los, precisamos detê-los.

Após algum tempo ele consegue, com esforço, confortá-la. Igor desce para o jantar. Anabel, em seguida. Os tios tinham carrancas severas e preocupadas. Durante todo o tempo aqueles pensamentos atormentaram ao segundo estranho, pobre Anabel! Tão bela e de tão fraca lucidez.

Na noite seguinte, a lua ergueu-se magnânima em todo seu impar, cheia. E o intrépido jovem cometera uma imprudência que lhe custaria um alto preço, preço a ser pago com sua vida ou barganhado com seu caráter. Igor os seguira, aos Ilhinoi, os vira amarrando seus cavalos em um lugar ermo e entrarem na mata fechada e semivirgem. Os gritos, gemidos, grunhidos o conduziram até que, por fim, os encontrasse, monstros em metamorfose, o humano dava lugar à famigerada fera insaciável que somente em histórias de assombração já havia ouvido. Fora aterrador, ele ficara tão chocado com o que vira que se descuidou enquanto fugia, quis sair dali o mais rápido que fosse e acabou deixando vestígios de sua presença. A mata era muito fechada e estava escuro, ele quase não conseguia encontrar o caminho de volta e nem tinha certeza se queria voltar, no dia seguinte pegaria Anabel e regressaria para o Rio, de onde nunca deveria ter saído, pensou.

Mas, logo depois da aurora, ele fora acordado com os homens em seu quarto, mostraram-lhe a manga de sua camisa, rasgada, que encontraram. O conduziram à força até a antiga senzala, onde ele teria que fazer uma escolha. Lá o amarraram em um tronco e rasgaram-lhe as roupas, surraram-lhe para saber se alguém mais conhecia o segredo, mas para a sorte dele convenceram-lhes logo suas negativas. Anabel, que voltava do vilarejo, percebeu a movimentação, aproximou-se e ouviu seus tios contarem sobre como tudo começara e quando aprenderam a transformar a maldição em dádiva, utilizando-a conforme seus desejos e a seu favor. Desde então passou de pai para filho a maldição, a força, o poder Ilhinoi e Igor deveria escolher se transformaria em um deles ou seria sangrado como um porco até a morte. Ele escolheu o pior.

Anabel nunca entendeu como fizeram, mas conseguiram arrastá-lo para sua escuridão.
Certa manhã, após o desjejum, um negrinho a avisara que Igor queria falar-lhe na velha senzala.

- O sinhô-moço disse que tinha uma “surpresa” pra sinhá.

Anabel saíra pelos fundos, sem ser vista, já imaginando quanto ralharia com ele por essa imprudência, mas lá chegando... Encontrou o pior significado que a palavra surpresa pode assumir. Não havia uma alma sequer naquele lugar, somente um desagradável odor que espantava até os vermes. Anabel sentiu um calafrio gelar-lhe a espinha, um sentimento estranho e mórbido, pressentimento talvez. Não se deteve um instante sequer naquela sentina sombria e tornou a casa-grande num repente.

Ao retornar, confirmaram-se suas mais terríveis suposições. Estavam lá, na sala, reunidos, o segundo estranho e seus odiosos tios. Anabel pasmou ainda na porta, apertando seu crucifixo em um gesto apreensivo de um quase desespero, pensou em fugir, sair correndo, ou destilar contra eles todo seu ódio recalcado. Optou pela aleivosa e sonsa calma de sempre.

- Eis quem faltava, não disse senhores que ela não tardava, agora podemos começar. – diz Belchior, com uma calma aterradora na voz.

- Chegaste bem a tempo. – diz Malaquias, coçando com vontade as pulgas do hisurto pescoço.

Percebendo que Anabel apreensiva, ainda permanece na porta, Belchior insiste com maior firmeza na voz.

- Acomode-se, cara sobrinha.

- O que se passa, aconteceu algo em especial? – ela se aproxima dos homens, sérios e de pé, à sua frente.

- Ah, sim. Decerto. Poderíamos dizer que hoje é o dia da grande revelação. – Belchior se senta, e todos lhe seguem o exemplo. Sobre a mesinha no canto entre os largos assentos, alguns cálices de vinho português, uma solitária vela acesa e algumas folhas de papel amareladas.

O segundo estranho permanecia com uma visível ansiedade impaciente, Anabel lança-lhe um olhar suplicante, mas ele se limita a devolver-lhe um amarelo sorriso e baixar os olhos, levando o cálice aos lábios e fingindo beber. Ela então arrisca romper o silêncio.

- Do que se trata?

- Tens certeza de que não sabes, Anabel? – Malaquias, inquisidormente.

- Por certo que não. – ela dissimula.

- Deveras? Supomos que estivesse tudo muito bem explicado nestas anotações deixadas por aquela perdida da Eulália, nas quais ela faz considerações nada amistosas sobre nós. – Belchior toma as amareladas folhas em suas mãos.

- Como...? – os olhos de Anabel fixam no rosto do segundo estranho, por segundos, fuzilando-o.

- Creio que não vais sentir falta disto, não é mesmo, Anabel?

Belchior despeja sua taça de vinho sobre os manuscritos, dentro de um largo cinzeiro de louça esmeradamente trabalhada, em seguida inclina a chama da vela sobre eles. Anabel apenas balança a cabeça negativamente, se consumindo como a flama aos papéis, que rápido se reduzem a cinzas.

- Sempre soubemos que o conhecimento nas mãos das mulheres era perigoso demais, são raça daninha, tudo pervertem. – diz Belchior com olhos fixos nas expressões contidas e indignadas de Anabel.

- Essa máscara de sonsa jamais me enganou. – Malaquias desabafa.

- Não adianta mais fingires. – estoura Belchior - Já sabemos de tudo.

Igor permanece em silêncio.

- Conte-nos, Anabel, qual seria teu próximo passo, envenenar-nos como fizeste aos negros? É isto? – Belchior impacienta-se.

- Perdemos muito dinheiro por tua causa, sua ingrata! – Malaquias levanta-se, domando firme as mãos para não avançar sobre a jovem e esbofeteá-la.

- Responda-nos! – Belchior grita, fazendo Anabel estremecer de pavor e ódio.

Ela permanece em silêncio. O que irrita ainda mais aos três homens hisurtos.

- Por que será que não me surpreendo, és tal qual Eulália, cínica, traiçoeira e tola. – Belchior atira num rompante seu cálice contra a parede espatifando-o.

- Deve de ser mal do gênero. – assente Malaquias.

- Bem, Eulália já teve o castigo devido. Agora o que fazemos com esta aqui? – Incita, Belchior, aos irmãos, perversas maquinações.

Jerônimo, o qual se absteve de falar até agora, jamais apreciara interrogatórios, deixava a oratória para os irmãos, para ele as coisas se resolviam de maneira mais simples, e a conversa havia chegado no exato ponto que lhe aprazia. Mas antes que se pudessem manifestar, Igor os interrompe em seus mais abjetos pensamentos.

- Senhores, Por Deus, deram-me vossas palavras de que não a machucariam. – o segundo estranho interfere.

- Igor tem razão, empenhamos nossas palavras, e não somos homens sem honra, não é mesmo? Acalmai vossos ímpetos, irmãos. A nossa cara sobrinha ainda deve ter muitas coisas a nos dizer, não é mesmo, Anabel? Uma criança tola como ela não seria capaz de fazer isso tudo sozinha? – diz Belchior, enchendo sua taça de vinho novamente.

- Sim, diga-nos, quem são seus cúmplices! – altera-se Jerônimo.

- Eu lamento, meus tios, eu lamento muito. O Senhor é testemunha do quanto eu estou repesa neste momento. Do quanto me arrependo de ter, todos estes anos, feito coisas desprezíveis, sem perceber o quanto minha alma se encontrava corrompida pelo ódio e pelo ressentimento.– Anabel leva as mãos ao rosto, enquanto todos a fitam, expectantes.

- Pelo que nos toma, por velhos tolos? – interrompe, saturado, Malaquias - Oras, sua víbora venenosa, cobra peçonhenta que trouxemos para nosso lar e a criamos quando nem seus pais te quiseram! – nesse momento Anabel tira as mãos do rosto, sentia como se uma forte bofetada lhe ardesse na face, aquilo era mais do que poderia suportar. Malaquias prossegue:

- Devia nos ser grata Anabel por tudo que fizemos por ti estes anos todos, e em vez disso o que fazes? Subestimas nossa inteligência e tentas engabelar-nos mais uma vez... Quando Eulália morreu deveríamos ter te enterrado junto com ela.

- A dor pela perda de minha querida tia me fizera perder o tino, algo de muito maléfico tomava minha mente, entorpecia meus sentidos e, a cada nova lua cheia, eu tinha mais sentimentos ruins, vontades abjetas, desejo por sangue... por sangue Ilhinoi. – explode uma revolta incomensurável - Por isso tudo eu lamento, lamento por não ter levado a cabo minha vingança e extinguido sua raça amaldiçoada Ilhinoi de uma vez por todas. Malditos! Vão arder no inferno, eu juro! Malditos!

Malaquias avança sobre Anabel, puxa-a pelo braço, rasgando-lhe uma das mangas do vestido, joga-a violentamente no chão e levanta a mão para bater nela, mas Igor o impede.

- Tu és a maior desgraça que alguém poderia ter na família. – ele diz, possesso.

- Não faças isto! – Igor o segura, mas é repelido com um soco que o leva também ao chão.

- Oras, deixa-me! Em pensar que eu quase cheguei a acreditar nesta história ridícula de maldição... – dessa vez é Belchior que o impede.

- Pare, irmão! Não façamos nada agora.

- Eu não vou deixar essa perdida sair impune...

- Ela não sairá. Trataremos a nossa querida sobrinha com o mesmo carinho que demos a nossa fenecida irmãzinha.

Belchior, então a pega pelo braço e a arrasta lá pra cima. Os outros o seguem. Ele abre a porta da alcova de Anabel com truculência, joga-a dentro, tira a chave da porta e sentencia:

- Vais ficar aí, trancada, para o resto dos teus dias, sua insolente. E quando a próxima lua cheia chegar... – ele liberta um riso forçado e sombrio - vais desejar que não sejam muitos.

Ele bate a porta com força e tranca por fora, guardando a chave em seu bolso. Todos saem furiosos, Igor se detém mais um pouco ouvindo o pranto de Anabel, e sai também. E apenas uma noite longa e insone separa-os todos dos infortúnios vindouros.

Aos dias que se seguiram em seu isolamento, Anabel tratou de aproveitá-los para dar seguimento ao seu audacioso plano de vingança. Era absolutamente maquiavelista. Desde as noites em que saía às escondidas e ia colher as ervas-más que Namboa lhe ensinara, para depois pô-las na comida dos infelizes negros - que se não morriam, inutilizavam-se para o trabalho -, até quão bem fingira sofrer com o fim daquelas falsificações, até modestas, dos manuscritos de Eulália. Como eles saberiam? Agora se fizera, finalmente, o momento da desforra.

Naquela madrugara tivera um sono agitado, convulso, suado. Ela não era sórdida em essência, temia pelo destino de Igor e não tinha dúvidas de que o mesmo ocorrera com sua tia, a angústia de perder o ser amado para as orgias escarlates ao luar e depois... Ó céus! Precisava detê-los, aos monstros, antes que fosse tarde demais! Acordara, a porta se encontrava aberta, um calor mordaz a fizera transpirar tanto que a branca camisola grudara em seu corpo, transparecida. Anabel levanta-se num salto e vai até a porta, sua liberdade. Pouco depois, não sabe como, e já está na cachoeira. A idéia de banhar-se naquelas águas gélidas não lhe aprazia, a brisa da noite já aplacara seu corpo, ela limita-se a se curvar e mergulhar as mãos na água, puxando um punhado para lavar-lhe o rosto. Os sons noturnos estão quietos, apenas dois olhos se destacam na escuridão, uma coruja que espreita do tronco de uma velha árvore ressequida e desfolhada, nesse momento, então, a lua cheia surge refletida no espelho da superfície liquida e algo emerge das profundezas, algo hisurto, uma criatura grande, coberta de pelos escuros, com orelhas pontudas, focinho largo e olhos vermelhos. Anabel a contempla paralisada. A criatura se ergue, equilibrando-se sobre os joelhos levemente curvados, a altura de um homem. Um pio. A coruja voa, assustada, rumo ao outro lado da mata escura, mas a criatura, para sua desdita, a vê e interrompe seu vôo arrebatando-a com uma das patas e levando sua carcaça sem vida à boca, arranca a cabeça da ave com seus afiados caninos e a cospe, devorando o resto bestialmente e com voracidade. Um filete de sangue escorre-lhe pelo canto da boca, então, um assombroso uivo. Anabel não tinha duvidas de que o mesmo lhe aconteceria se a fera a visse, mas, já era por demais tarde, sua presença fora percebida. A criatura lança-lhe um olhar famélico e aterrador, aquele pobre animal havia sido, decerto, apenas um aperitivo, agora ela seria o banquete. A fera, então, se põe de quatro para mais rápido locomover-se, avança com fúria e...

Anabel desperta assustada, se levanta e vai até a porta. Um certo contentamento lhe invade ao constatar que a mesma se encontra tão trancada como seu tio sentenciara. Que pesadelo terrível! Parecia um... Sinal. Anabel leva as mãos ao peito e percebe seu coração acelerado, nesse momento sente estar tendo um pressagio de que algo muito ruim é vindouro.

Pela manhã, a escrava fora deixar o desjejum de Anabel em sua alcova e não a encontrara, olhara em quase todos os cantos, então, saíra atordoada deixando descuidadamente a porta aberta, e fora avisar ao capataz que a sinhazinha Anabel não estava em seus aposentos. Ao chegar no quarto e se dar conta do que se dera, o homem arrasta a pobre escrava para o tronco e a surra até a morte. Enquanto isso, Anabel já seguia por uma trilha secreta que dava para o vilarejo, em um cavalo que roubara do estábulo Ilhinoi, audaciosamente, para sua fuga.

Igor, ao perceber o que se passava, tratou logo de ir a cozinha e interrogar a mucama de companhia usual de Anabel. Ele surpreende a pobre negra, encosta-a na parede com violência, pega um garfo e o põe a distância de uma polegada do olho esquerdo da infeliz.

- Anabel fugiu. Tu a conheces negra, aonde ela iria?

A escrava apenas balbucia as primeiras palavras de Igor, o medo lhe embaralha as idéias.

- Aonde ela iria? – Igor inquire com mais ímpeto, um quase ódio, ameaçando a pobre negra.

- Num sei, sinhô... O vilarejo talvez, o vilarejo.

- Se contares a alguém essa nossa conversa, considera-te morta.

Ele afasta-se da escrava, larga o garfo sobre a mesa e vai em busca de sua amada.

Com o sol decrescente, Anabel chega na capelinha do vilarejo de São Mateus e adentra esbaforida para falar com o velho padre. Ela cai de joelhos aos pés do ancião, que pede que ela se levante e ordena ao sacristão que se retire.

- O que houve, minha filha? O que a traz aqui neste estado?

- Ajude-me, padre! - Anabel principia a chorar.

Um moleque chega no canavial avisando. Belchior que castigava a um escravo, de ódio, sai chicoteando os colmos da cana-de-açúcar. Malaquias corre a chamar Jerônimo que, entre as pernas de uma negra, nem ouvira o irmão bater na porta do celeiro, que veio a baixo com um chute. Os três partem cobrindo a mata, Anabel não poderia estar muito longe, e não estava.

O cavalo de Igor corria rápido, mas o sol já se punha e logo a noite traria consigo a escuridão e a lua, cheia.

Anabel, sentada no parapeito da janela no alto da modesta torre, rezava. Conseguira a muito custo entre prantos convencer o velho padre de que fora vítima de intrigas, nas quais seus tios haviam acreditado e que ofendiam sua honra covardemente. A principio, o velho resistiu, mas quando Anabel astuciosamente apelou para a memória de sua fenecida tia o velho padre concedeu-lhe que passasse ali uma noite apenas, até que tudo esclarecido fosse. Anabel apertava firme seu crucifixo e rezava para que finalmente sua alma encontrasse a paz que tanto buscava, em sua vingança ou... O sol se fora e era chegada a hora do fim.

Já estava próximo ao vilarejo quando, como que em uma vertigem, imagens carregadas de angústia e desejo lhe vieram à mente, Igor se assusta. O segundo estranho puxa as rédeas e desce, sua visão está turva, ele caminha com dificuldade apoiando-se nos troncos das árvores, as imagens se tornam cada vez mais nítidas, todas remetem a Anabel. Uivos são ouvidos ao longe, o cavalo se inquieta, Igor está confuso, ele sente seu corpo inteiro arder de vontade dela. Precisava encontrá-la, precisava... – ele se esforça para conservar alguma lucidez, mas já é impossível, seus instintos afloram de maneira arrebatadora e a flama da ferocidade brilha em seus olhos. Ele torna ao lugar onde deixara seu cavalo, mas o mesmo já não lhe reconhece e repele sua aproximação braviamente. Igor se impacienta com a atitude do animal e sangra seu lombo no chicote em um acesso de fúria, diante do que o pobre animal acaba por pinotear, e fugir. Maldito, desertor! – Igor pensou, e tentou prosseguir a pé. Não faltava muito, agora era só uma questão de... Tempo. Mas isso era algo que ele logo descobriria que não mais tinha.

A luz da lua bateu em seu rosto, sentenciadora. Uma dor aguda, vinda das profundezas de suas entranhas, o fizera gritar em desespero. As vestes lhe incomodavam, ficaram pequenas, apertadas, cerceavam-lhe o ar, então, rasgou-as com suas afiadas unhas em brutos gestos, e junto com o tecido saía também uma carne podre, enegrecida, e dela emergiam pelos negros e longos. Tomava-o por inteiro a fera.

Anabel esgueirou-se por escuros corredores até a sacristia, onde o velho padre devorava com pecado uma farta coxa de frango. Anabel, então, seguira até o corpo da igreja, o sacristão fechava as portas, ela corre como que por pressa e vai até ele, aparentemente agoniada.

- Ajudai-me! O padre Olavo caiu e não consegue se levantar.

- O que dizeis, criança? – o pobre homem de mansa voz se aflige e vai imediatamente em socorro ao velho padre, Anabel o segue, trancando os dois na sacristia e indo até a biblioteca da capela onde escondera os manuscritos originais de sua adorada tia.

A fera circunda a capela, farejara o cheiro de Anabel até lá. Uma forte chuva cai sobre ela encharcando os escuros pêlos, para tentar livrar-se do excesso de água a fera joga o corpo para os lados em movimentos ritmados. É inútil. Como se o frio a incomodasse, um uivo aterrador.

Encontrara finalmente o que procurava, graças a sua tia teria a oportunidade de vencer a “maldição”, mas ela sabia que seria única e se a perdesse tudo estaria perdido também. Anabel pega o livro, põe sua capa e cavalga na madrugada de volta a fazenda Ilhinoi.

A chuva cessara, mas os céus continuam negros e revoltos. A lua desaparecera por entre as negras nuvens e, apesar do enigmático silêncio, as trevas estavam inquietas. Anabel os vê, os monstros, entrando na casa-grande, cambaleantes e recém destransformados. Ela aguarda um pouco, adentra pela cozinha e fica a observar. Os três vão direto a garrafa de porto, algo sobre o álcool mitigar o mal-estar ocasionado pelo processo de transformação na coisa, em seguida sobem exaustos, eles estão cansados e, se a lua não os chamar novamente, vão dormir horas a fio, profundamente.

Os poucos negros que ainda restam se encontram em festa, a chuva parece tê-los instigado ainda mais, somente um homem os guarda, os outros ficaram detidos pela tempestade no vilarejo, ainda por causa da busca. Anabel, então, sobe até os quartos, abre a primeira porta, tira a chave, que estava pelo lado de dentro, cuidadosamente, para não fazer nenhum barulho e a tranca por fora. O mesmo ela faz com as outras três e sai dali rapidamente, tem pouco tempo para executar seu plano e se salvar. Ela retorna até a cozinha para pegar o liquido comburente e, quando já voltava a sala, é surpreendida por uma mão grande, escura, calejada, a acalma para que não grite. Reconhecera o cheiro, já velho, de quem a anos vela por ela - um anjo negro – conhecedor de seus pecados, cúmplice fiel em seus mais abjetos delitos. Ela olha para a garrafa de porto sobre a mesinha baixa, no canto e, em uma conversa silenciosa, ele lhe diz que fizera exatamente como ela pedira, resposta que a satisfaz.

- Todos esses anos fui apenas um fantasma a assombrar minha própria existência, agora ou eles morrem e eu começo a viver ou... Não há mais volta. – ela diz, mais pra si mesma, fundamentando coragem para prosseguir.

Anabel faz um sinal para que ele se vá, o que é acatado prontamente. Ela sai a espalhar o óleo por toda a casa - a tapeçaria, a mobília, as velhas paredes... Mas o mal tem suas peripécias e algo inesperado acontece, enquanto ela subia a escada a madeira range como se os avisasse do perigo que corriam. Anabel, instintivamente, olha para os cálices sobre a mesa, dois foram bebidos até a metade, mas um deles permanecia intocado, cheio. Eles hão de despertar! - uma voz em sua mente ecoava a terrível certeza... Pior, sentença. E estava deveras certa, um de seus amaldiçoados tios espertara.

A lua reaparecera e ele já começava a se transformar na terrível fera, seus gritos eram aterrorizantes, ela o ouvia se debater em seu quarto quebrando todo e qualquer objeto que lá se encontrasse, logo os outros também despertariam, assim, sem mais pensar, Anabel sobe velozmente e faz um enorme esforço empurrando o peso de seu corpo contra uma cômoda do corredor colocando-a em frente a porta, bloqueando-a. A fera tenta abrir a porta desesperadamente. Enquanto descia as escadas, Anabel ouve uma pancada violenta e olha para cima instintivamente, o braço do monstro atravessara a porta com um soco, a visão é grotesca, tinha dedos longos e finos com unhas enormes e sujas, que mais pareciam garras, era coberto de pelos negros e grossos. Os gritos dão lugar a um agônico uivo.
A lua desaparecera novamente.

Outro soco e ele faz um buraco que lhe permite colocar através deste a cabeça, ele, então, a vê parada aos pés da escada com um castiçal de três velas na mão. Ela, impassível, inclina a chama das velas sobre o tapete embebido em óleo que começa a arder vorazmente e, logo, as labaredas já vão tão alto que lambem o teto. Anabel sai e espalha o óleo pelo lado de fora da casa também, essa noite eles não conseguiriam fugir, experimentariam uma chispa do inferno onde suas almas atrozes arderiam por toda a eternidade.

Permanece ali, parada, por alguns instantes, a contemplar sua própria vileza em combustão. Só Anabel sabia o quanto era culpada e, ainda assim, lei alguma, nos céus ou dos homens, comportaria o entendimento necessário para julgá-la. O velho casarão arde em chamas e ela possui a absoluta certeza de que jamais lhe atormentará o sono algum remorso ou lhe queimará no peito arrependimento. A lua ressurge, inquisidora, e a noite chora tenras lágrimas por seus filhos que se foram. Anabel foge da chuva e em meio a grossos pingos reluzentes ela avista a obsoleta senzala, onde tudo começara e onde tudo fatalmente terminaria. Este lugar sempre lhe dera asco, mas apesar de seu esforço para proteger o precioso livro sob sua roupa, já sentia suas velhas páginas empapadas, e como não podia arriscar-se a perdê-lo, venceu suas superstições, nem tão tolas ou incoerentes assim, e forçou a velha porta de madeira, não tivera dificuldade alguma em abri-la, estava podre e infestada de cupins. Ela entra, tira a capa e o vestido encharcados e os estende no tronco ficando apenas com as roupas de baixo. Anabel, então, senta-se em uma esteira surrada que se havia estendida no chão, acomoda-se e sob a luz tênue da lamparina abre o livro com cuidado, as páginas estão grudadas de umidade e parte das orelhas já foram devoradas pelas traças, o que dificulta um pouco mais sua procura, mas, por fim, com paciência, encontra o trecho que aborda a licantropia, fenômeno tão antigo quanto o próprio surgimento da humanidade e registrado desde as épocas mais remotas como um retrocesso do homem a sua animalesca essência.

De repente, Anabel escuta um uivo ainda mais perto. Ele está aqui. Ela sabe, e sabe também que não há para onde fugir. Agora não mais teme a morte, ainda que deseje ardentemente viver. Ele está lá e circunda seu esconderijo. Anabel se levanta de súbito e vê uma enorme sombra se mover no chão atrás dela, como se preparasse para atacar. Ela se vira lentamente, o batimento cardíaco acelera e a respiração se torna mais difícil e lenta, Anabel aperta seu crucifixo com tanto força que gotículas de seu sangue escorrem por entre os dedos, quer apreciar cada metro cúbico de ar que entra em seus pulmões, qualquer pode ser o último, e então... Ele em um salto lança-se sobre ela jogando-a no chão de terra batida e rasga-lhe a veste com um único golpe de suas unhas. O medo a emudece, não há como lutar contra aquele corpo de descomunal força e... Desejo. O monstro se posiciona entre as coxas dela obscenamente, Anabel sente o bafo quente e desagradável da fera arquejando perto de seu rosto, os pêlos duros e molhados do peito de seu algoz roçando contra seus delicados seios, a língua áspera da fera queimando em seu pescoço... O barulho da chuva e dos tambores a atordoa, abafa-lhe o grito. Na outra senzala, uma cabeça rola pela liberdade. Ele já estava dento dela, dilacerando-lhe as carnes virgens, o sentia rijo, profundo, pulsante, voraz, viril, lancinante. Jamais imaginara que a primeira face do amor pudesse ser tão feia. Ele se movimentava como um louco, e parecia sentir prazer naquilo tudo, então, quando a ele veio o feroz gozo, ela o sentiu mais fundo e intenso até que, por fim, inundou-a libertando um mitigado uivo. E, sem vacilar, aproveitando-se do momento de fragilidade dele, Anabel arrancou seu crucifixo de prata do pescoço e cravou-lhe no peito. O sangue dele pingou-lhe seus seios, o dela, escorria-lhe nas coxas, quando, já sem forças, desfalecera. Então, a fera deu lugar ao homem, seu corpo nu e cansado jazeu sobre o dela. Fez um esforço para beija-lhe os lábios vermelhos e entorpecidos, para depois também desfalecer.

Texto de k.t.

O DESPERTAR




“O primeiro raio de sol lancina como que a sentenciar a vil verdade: Tudo o que houvera antes era treva”.

Perdi minha alma.

E minha inocência.

Perdi, não que fora entregue ou roubada. Simplesmente acordei certa manhã de um sono letárgico, um sonho que me entorpecera por dias seculares, e agora, infelizmente ou felizmente, eis-me desperto.

Percebo que o mundo a minha volta já não é o mesmo, embora permaneça o de sempre. Eu não sou a mesma. E, pela primeira vez, encontro alguma graça no ar que entra em meus pulmões, a graça natural que a vida tem para quem se descobre vivo de repente. Mas abrir os olhos exige uma humana coragem que nem todos os humanos possuem, dói, e mantê-los abertos exige grande determinação. Para nós, fracos mortais, que tingimos o mundo com inúmeras cores quando, na verdade, o sabemos cinza e o fazemos negro, que construímos nossas tão gentis verdades sobre as mentiras mais vis, para nós tem que sempre haver um caminho, um único e indesviável, o qual nos leve a algum lugar que não a incerteza do abismo.

Criamos o certo para amarmos o errado, e esperamos o tempo todo que algo aconteça para nos desviar, que lobos apareçam para nos devorar e afastar de nós o fardo da responsabilidade por nossas próprias escolhas. Ser livre é ser cativo apenas de si mesmo. E em meio a tudo, transitando entre deuses e demônios, infernos e paraísos pré-construídos, está minha frágil figura, frágil por minha efemeridade diante do tempo e por minha inconstância e por minha constância, por lutar incessantemente contra a animalesca essência que habita em meu sangue.

Viver é desafiar-se, descobrir-se contrario a si mesmo, jogar-se, perder-se, temer e não regredir diante do incerto, pois, na vida, a única coisa que é certa é que um dia ela se extinguirá.


texto de k.t.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

O MISTÉRIO DA GALERIA


O menino adentra a densa massa corpórea da multidão numa manhã cinzenta. Todos absortos em suas conjecturas, nem mesmo percebem quando os pequenos olhinhos vivos recaem sobre as peças de roupa cuidadosamente arrumadas sobre o escuro quadriculado do chão. Dentre os itens da intrigante indumentáriazinha, que mais se assemelham a peças de um quebra cabeças macabro, um em especial chama a atenção de Albert, um lenço branco. Nele bordado o nome Lorraine.
Albert não sabe ao certo quanto tempo esteve a contemplá-la antes que um vento vindo de súbito erguesse a delicada peça conduzindo-a até onde apenas a imaginação de um homem é capaz de chegar. Ele então se levanta num salto, seu instinto investigativo se aguça, e sentindo-se ainda achegado de gente, encaixa os dedos de uma mão entre os da outra esticando os braços pra frente, franze a testa, ajeita seus óculos e diz para seus Watsons, com impar:
- Sigamos a pista!
E sai o menino seguindo o lenço, o qual é levado pelo vento até a entrada, pela superfície, de uma das galerias da rede pluvial. Albert vai a passos lentos para que o acompanhem, já os imaginava boquiabertos, abismados com sua astúcia e destreza. Esperava que a menina estivesse bem e já pensava até nas palavras que usaria para consolá-la e a abraçaria se estivesse frio - e com certeza lá estaria frio.
Ao chegar em frente à velha galeria um tremor esmorece-lhe as pernas, ele vira a cabeça para trás lentamente, mas as sombras de seus expectadores o instigam. A galeria ficava nos fundos do parque Heinstein, as amoreiras carregadas deixavam cair seus frutos por sobre os brancos bancos, tingindo de vermelho a inocência de sua cor. O menino respira fundo e entra. O lugar decrépito tem um cheiro forte, acre, mefítico de matéria orgânica decomposta, provavelmente devido a grande quantidade de roedores pestilentos ali presentes, as paredes eram cinzentas e úmidas, uma escada de poucos degraus imergia nas sombras de um subterrâneo umbroso, silencioso e frio. O menino segue firme, os heróis não temem, não vacilam, não... Um som rasgante rompe o silêncio, como que em agouro, Albert só pensava no medo que os outros estariam sentido agora, mas que nada! Confiavam nele e em seus instintos, era muita responsabilidade, mas daria conta. Ao chegar lá embaixo um estreito corredor se estendia a sua frente e uma água des-inodora, des-insipida e des-incolor lhe batia nos joelhos. Adentrou. Os enormes ratos cinzentos subiam e desciam pelos lados, na encosta das paredes úmidas. O silêncio é rompido pela segunda vez, agora por um inesperado espirro. Droga! Era a alergia, mas nem isso atrapalharia sua missão, se nem seus pais, sempre tão cuidadosos, disseram nada... O menino continua seguindo pelo corredor quando finalmente encontra o lenço de Lorraine boiando na superfície do líquido escuro, à direita em uma bifurcação, e nele, notara bem, havia manchas que não conseguira distinguir, mas não se lembrava de tê-las visto quando o pegou pela primeira vez, as coisas se tornavam cada vez mais estranhas... Talvez aquilo também fosse um sinal, o menino então entra pelo corredor da direita e dezenas de ratos enormes pulam na água fazendo um barulho semelhante a passos. O menino ouve, depois de algum tempo, algo estranho no silêncio e olha para trás instintivamente, é então que ele percebe que agora está... Sozinho?! Oh, não! Eles foram pelo outro lado - ele pensa, e sem vacilar volta pelo corredor escuro. Albert pára, por alguns instantes, novamente em frente à bifurcação, é quando escuta um som mais ao longe, trazido pelo eco, e grita que estão indo pelo caminho errado, mas não obtém resposta.
Albert, então, entra no corredor da esquerda, precisa alcançá-los antes que se percam. O menino anda e anda e a angústia começa a rondá-lo, e se não os encontrasse? E se algo de ruim os acontecesse? Seria por sua culpa. Que grande detetive! Em vez de encontrar pessoas, as perdia, em vez de resolver o mistério, o tornara ainda mais... Seu celular toca, no visor pisca o nome de seu pai, Albert treme e não entende a sensação de insegurança que o toma de repente como se algo nele despertasse, algo como um instinto antigo, um desejo de sobrevivência... Ele leva o aparelho a seu ouvido lentamente, e uma palavra sai confusamente dorida de sua garganta, como se ela também deixasse sua alma.
- Papa!
- Albert! Mon petit, onde estás?
O menino empalidece, teriam seus sentidos o traído? Estaria ele naquele lugar horrível... sozinho... desde o início? Logo imagens como lembranças ficam certas em sua mente - as pessoas se afastando, seus pais próximos ao canteiro, o umbro das árvores, os ratos - tudo fizera o terrível sentido do engano. Então o medo o arrebata, sua voz fraqueja e o frio o toma, ele agora reponde com desespero.
- Papa, estou na galeria do parque Heinst...
A bateria acaba, o menino olha para o aparelho inútil em suas mãos, rezando para conseguir encontrar o caminho de volta. O pavor agora se instalara em seu coração – lancinante - e o menino começa uma busca angustiante pela saída. Ele volta pelo corredor, pára mais uma vez diante da bifurcação, mas centenas de ratos parecem estar vindo da direção de onde ele veio e da que a perpassa, eles agora parecem pequenos demônios com olhos vermelhos e furiosos. Não há saída. Eles o encurralam e o forçam a seguir novamente pelo corredor da direita. O menino chora e seu pranto ecoa despertando algo mal, sua pele já começa a enrugar e ele sente sua cabeça doer, é então que encontra, finalmente, um lugar seco. E sobe a rampa de cimento com dificuldade, as roupas encharcadas lhe pesam, não é mais tão divertido.
Ao longe, próximo a uma outra bifurcação mais adiante, Albert tem a impressão de ver o corpo de uma menina, imóvel, encolhida no chão frio, mas seus óculos estão embaçados, e quando ele vai tentar limpá-los com sua blusa úmida as lentes escorregam do tecido e vão parar no chão. Albert ainda tenta reavê-los, mas estão inúteis, quebrados. Quando o menino levanta as vistas, lá está ela, encolhida, a sua frente, usa apenas uma peça intima com delicados babados cor-de-rosa, ela treme. Ele a olha, a princípio com temor, em seguida, penalizado pelo sofrimento de uma criaturinha tão frágil, se manifestam agora seus instintos fraternais. Lorraine contava quatro primaveras com esta, era-lhe apenas dois anos mais nova.
Albert se aproxima, faz um sinal com as mãos para que ela não tenha medo, que nada mais de ruim a acontecerá, ela responde apenas com uma frase que o deixa ainda mais comovido.
- Tenho... friiiiiiiio.
O menino então, sem pensar, a abraça aconchegando o corpinho da pequena no seu, e diz coisas que a acalentem, como que eles vão ser encontrados logo, que nada de mal vai acontecer, coisas assim. Ele também sente muito frio, e ainda mais agora que compartilha seu calor com Lorraine, por um momento chega a pensar que nenhum dos dois escapará a aquela situação com vida, é então que ele se lembra do lenço, o qual colocara em seu bolso, ele o pega e o entrega a menina, mas agora as manchas parecem mais evidentes, mais vivas, mais escarlates... O súbito sentimento de carinho e compaixão que o amortecera a pouco já se transforma em um terror mórbido, Albert reúne todas as suas forças para encarar novamente a menina, é horrível... A pele dela é fenecidamente branca e seus dedos e lábios estão levemente arroxeados. E há um outro detalhe, um de natureza ainda mais extraordinária - para não dizer aterradora -, a delicada peça de renda, a única que cobre seu rechonchudo corpinho, a qual mostrou-se aleivosamente rosa, é, na verdade, branca, mas de uma alvura maculada pela perversidade e sordidez de um monstro. Ao ver o lenço a menina dá um grito inumano, Albert se assusta e a afasta, mas a menina o encara furiosa e avança sobre ele pondo-lhe as gélidas mãos sobre o pescoço, roubando-lhe as últimas reservas de energia térmica, vital. Albert fica completamente paralisado, entorpecido, inerme. Seus olhos captam borrões do que seriam morcegos agitando-se no alto, essas imagens se confundem com as de dor e desespero que a menina lhe passa, o monstro que a havia arrebatado e lhe roubado a inocência e a vida, machucando-a e depois a abandonando para que morresse ali - o lenço era só uma lembrança, era assim que ele fazia. Albert pensa em seus pais, não quer mais ser detetive, e talvez nem possa ser mais coisa alguma, o mundo é um lugar tão feio, ele então fecha seus olhos encolhendo-se imitando Lorraine, mortificado por seus gritos... suas súplicas... seu medo... sua dor... sua solidão... seu frio... O silêncio.

Texto de k.t.

O MISTÉRIO DA GALERIA II - LETARGO


Seu corpo debatia-se sobre a cama, como se nesta não lhe houvesse lugar.
Estava sozinho e a solidão o inquietava, o fazia sentir-se frágil – em momentos assim aquelas terríveis lembranças lhe saltavam a mente, frias, dolorosas e aterradoras - tinha de se manter alerta a algum perigo que houvesse a cerceá-lo na intimidade devassada pelos mais pesarosos fantasmas em seu lar.
Vinha-lhe o som cadente das águas, o bater de asas dos morcegos, o arranhar dos ratos nas paredes úmidas, a voz Dela em seus pensamentos, compartilhando com ele seu desespero. E vinham-lhe passos... Passos? Sim, passos. Passos ao longe – seriam novamente os ratos? E vozes. Vozes - distantes e próximas - sussurradas em seu ouvido. Podia sentir o fremir de lábios. Era loucura! Queria que fosse. Antes louco do que aquilo tudo ser... Real. Já era noite, jamais se aventurara a imergir profundamente na escuridão – desde aquela vez - mas, hoje o tempo lhe fugira aproveitando-se de seu breve e descuidado torpor.
Encontrava-se ofegante, em seus sonhos conflitava, o que de terrível se passava em sua pseudo-inconsciência? – nem sempre é a morte o pior destino - Apenas sabia-se assustado, meio adormecido e meio desperto, perdido entre dois mundos: este e o outro em algum lugar de sua atormentada mente.
Seus olhos abriram de repente, intenso, como se um forte impulso o tomasse e o despertasse, ou se reagisse aos chamados Dela.
Mas sua mente a muito não reagia como seu corpo, ainda perdida no passado, naquele lugar há dezesseis anos, no início de seu desvario e perdição. Lorraine, não! Não! Lorraine, pare! Pare! - E ela não parava, não tinha por que parar, ele suplicava em vão para alguém que não mais existia. A coisa que não se sabia morta, apenas desejava sofregamente a vida, com madurecido ímpeto e egoísmo infantil. Foi quando já desistido, que os passos se aproximaram, Albert os ouviu estagnarem diante a bifurcação, onde se dividiram, o então menino não mais tivera forças para gritar, as mãos da criatura contra seu pescoço obstruíam qualquer possibilidade sua de emitir um som. Mais! Mais!- a criatura exigia, mas também sentia a presença dos intrusos que se aproximavam, foi então que, em um gesto quase desesperado, ela o forçou a sair de sua posição fetal, deitando-o de costas e pressionando-lhe o queixo com sua cadavérica mão, preparando-lhe a boca para, então, sugá-lo. Albert sentia seu fluido vital lhe escapar por entre os lábios e Lorraine se tornava cada vez mais forte e recomposta, quase era percebível em suas doces feições demoníacas a aura da pureza novamente, era como se a essência dele a refizesse, lhe mitigasse, de alguma forma diabólica, o sofrimento, como se uma troca profana estivesse sendo perpetrada, sua dor pela dela.
Depois de Einstein o tempo nunca mais fora o mesmo. Os segundos parecem se arrastar com odiosa má vontade nos momentos de desespero, angústia, medo... Quantas eternidades não se terão durado até que eles chegassem. - Olhem, o menino está ali! Será que ele ainda vive? – diziam enquanto rompiam a escuridão com as luzes fortíssimas de suas lanternas, uma delas, notou Albert, incidira direto no rosto da criatura que fugira assustada para as sombras, e desaparecera, como se jamais houvesse estado ali. Albert fora, felizmente ou infelizmente, encontrado e encontraram também o corpo da pequena Lorraine mais adiante, violado, encolhido, decomposto. Albert acordara na manhã seguinte, em um quarto de hospital, sua mãe sentada desconfortada em uma cadeira ao lado de sua cama, adormecera durante a vigília – os Giller jamais se perdoaram por terem quase perdido seu petit, e por muitos anos ainda acordavam durante a noite, quando, assustados, choravam em silêncio.
Não, ele não estava mais dormindo, sua alma retornava lentamente, a ocupar sua detestável matéria. Albert detestava seu corpo físico, detestava todas as percepções que este lhe podia proporcionar e todas as restrições que o mesmo lhe impunha, principalmente. Os outros julgavam-no louco, e iam além, atribuíam-lhe isto ao suposto trauma que vivenciara na infância. Imbecis! Se soubessem...
Albert reluta em voltar, tenta continuar perdido em seus pensamentos, mas aquela vozinha, infantil e fustigante, não lhe permitia mais se sentir disperso. Aos poucos o cenário ao redor lhe alcança nitidez e seus olhos conseguem distinguir os vultos dos objetos, dos móveis, da janela e Dela. Estava ali, parada, ao seu lado, para contemplar, mais uma vez, perversamente seu desespero. Ela sorri, sorrindo é ainda mais repulsiva, e Albert sabia bem que nada lhe adiantaria gritar, pois, sequer quando havia quem o escutasse conseguira livrar-se de sua desdita. Ele então espera trêmulo, irrequieto, apreensivo e dócil que Ela mais uma vez o arrebate, roubando-lhe um muito da vida com seu beijo de treva.
Sentia-se arder ao mesmo tempo em que a gelidez da morte o consumia. Jazia exausto. Ela tomava-lhe o fluido vital com sofreguidão, não era a primeira vez que o fazia e nem seria a última. E diante deste pensamento lhe parecera bastante coerente uma frase que ouvira: Certas certezas são como sentenças.
Texto de k.t.

FÉRETRO SENTIMENTAL


A meia-noite se espalha sobre o véu de luto da paixão
Já fora tecida a mortalha com os moldes do meu coração
Entorpecido e adormecido
Jaz em seu sono imortal
Já lhe não abrandam gentis verdades
E nem lhe assombram os ardis do mal

Tantas promessas foram descumpridas
Bem lá no fundo eu já sinto o fim
Era tão intenso o que havia aqui dentro
E aos poucos foi morrendo dentro de mim
E quando lembro algo de nós
Eis que chega ela saudade atroz
O que foi de sonho e o que ficou se dor
Quando existido e sepultado o amor

Veio com o tempo da tempestade
Um sentimento de ímpia vontade
Que só sofrer lhe fez
Longe estará do paraíso
Visto que traz um pulsar consigo
Que lhe não permite despertar mais uma vez

Letra de k.t.